Antes de mergulharmos numa realidade com fumo terapêutico ou voarmos na recreação da canábis, é importante fazer um ponto de ordem sobre qual é a realidade legal e a realidade de facto relativamente ao consumo deste trevo multifolha.
Primeiro, parece-me essencial ir ao cimento base da dependência. Johann Hari, jornalista britânico no “Ted Global London”, com o título “Everything you think you know about addiction is wrong” (“Tudo o que acha que sabe acerca de dependências está errado”), termina a sua exposição com a importância de amar resilientemente os que sofrem de algum tipo de dependência.
O professor Bruce Alexander da Universidade de Vancouver, no Canadá, na sua experiência “Rat Park”, ou seja o “Parque dos Ratos”, mostrou como ratos presos em gaiolas fechadas consumiam compulsivamente água aditivada com alguma droga até morrerem de overdose na presença desta e de água sem qualquer aditivo. Curiosamente, quando colocados num Parque de Ratos, com possibilidade de socialização com outros ratos, bolas de queijo, rodas para se exercitarem – no fundo, quando colocados num paraíso de ratos – estes tinham bem menor compulsão para consumir esta água aditivo.
No possível paralelismo com a realidade humana, ficamos questionados se a toxicodependência se solucionaria com um “Human Park” (“Parque Humano”). E, portanto, a dependência química que, muitas vezes, serve de contra-argumento nas matérias de toxicodependência pode resumir-se a uma questão simples: trata-se de Adesão ou Adição?
Em Portugal, de acordo com o Relatório do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências de 2016, entre 2012 e 2016/17, revelou que há um número crescente de pessoas a consumir e com mais padrões de consumo diário. Persistem importantes heterogeneidades regionais, das que se salientam uma maior prevalência no consumo de canábis na região dos Açores e no norte. Mas, mesmo assim, Portugal tem valores de prevalências de consumo de canábis, cocaína e ecstasy inferiores à média europeia.
A lei portuguesa mais atual (Nº30/2000) relativa à produção, comercialização e consumo de cannabis é mais ou menos clara: “Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 30 dias. (…) se o agente for consumidor ocasional, pode ser dispensado de pena”.
Mas, já em 1993, Portugal foi ímpar no olhar que lançava sobre a toxicodependência, quando passa a vigorar o Decreto de Lei n.15/93 de 22 Janeiro – para as questões de tráfico que insistem que “o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior constituem contra-ordenação”, mas “a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”. E foi ímpar precisamente porque transporta a bola de neve das toxicodependências do Ministério da Justiça para o Ministério da Saúde.
Em Portugal, na década de 90, distintamente de uma larguíssima maioria de países, consumir compulsivamente drogas recreativas deixou de ser tratado como um crime para ser tratado como um quadro patológico. Com terror, recordo-me da pena de morte a indivíduos envolvidos em consumo e tráfico de droga na China.
Por tudo isto, Portugal é dado como o melhor e o mais referido exemplo de descriminalização do consumo de drogas.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a canábis é a substância mais cultivada, consumida e traficada em todo o mundo e, ironicamente, na atualidade, os médicos, sobretudo os que lidam diariamente com quadros clínicos álgicos de difícil gestão, gostavam de contar com a canábis ou os seus derivados no seu arsenal terapêutico. A Ordem dos Médicos e outras organizações foram e são claras a vincar a evidência forte em como existe benefício claro do uso de canábis.
O que falta, afinal?
Falta, com urgência, regulamentar o uso de canábis e seus derivados em doentes e estudar a possibilidade séria de regulamentar o uso recreativo e o foco começa com as mesmas sílabas: regular.
Regular o consumo: certificando produtos, certificando a qualidade da produção e do produto final e certificando o controlo da distribuição dos canabinoides.