
Crónicas Avulso
A nossa vida tem pouco de interessante. Digo isto de uma maneira global. É muito raro existir uma vida que mereça uma biografia redigida e editada de modo a que agarre milhares ou milhões de leitores. Quando lemos sobre essas vidas normalmente são estrelas de rock ou são casos excecionais. É por isso mesmo que se torna difícil escrever. Uma parte dos escritores, quando estão a começar, tende a cair na tentação da autobiografia mascarada de ficção. Escrever sobre aquilo que vive, tenta ser “genuíno”. No fim sente que está uma obra incrível, extraordinária, mas apenas porque foi ele quem a viveu. Da perspetiva de um terceiro é apenas uma história. Alguns viveram mais, outros menos, outros melhores, outros piores… e tudo cai nos mesmos temas, especialmente entre autores da mesma geração, situações sociais semelhantes e localizações geográficas.
A velha história de um aspirante a escritor como personagem central, a dificuldade que tem para escrever, o resto das personagens como secundários, alguns aparecendo apenas uma única página… pelo caminho encontra paixões, álcool, drogas, etc., mas há aquela pessoa especial que o faz “voltar ao mundo”… enfim, também eu já escrevi esse livro. Um romance de trezentas páginas, semiautobiográfico, sobre as experiências que vivi (e até aquelas que procurei viver). No final percebi que não era nada demais e arrumei-o numa gaveta. Porquê? Porque posso procurar todos os dias essas novas experiências, escrever sobre esses dramas, conhecer pessoas, e por aí fora… a dificuldade é criar realmente uma história! Adicionar adjetivos ao relato jornalístico da minha experiência não é um bom livro.
Com a falta de criticismo no meio literário português, onde parece sempre que há espaço para tudo e para todos, e que todos são muito bons de qualquer maneira, que “o que importa é participar”, a quantidade desses textos teve um crescimento exponencial. Todos querem escrever um livro, ser imortais, exclamar em convenções sociais ou familiares “sou escritor”… podemos facilmente descobrir mil contas de instagram com pequenos textos relatando o coração partido, a quão especial aquela pessoa era, as restantes que se conhece para esquecer a tal, as noites de copos, as rebeldias… até os “nomes próprios” ou signos agora têm “textinhos” para fazerem sentir especial todos os “Josés” e “Marias”, “Carneiros” ou “Gémeos”, explicando como é que são únicos sendo comuns… mas estou a fugir ao meu tema.
Criar uma história, de raiz, é para mim o mais difícil no trabalho de um escritor. A escrita semiautobiográfica pode continuar lá, os sentimentos podem continuar lá, até os dramas clichés podem continuar lá… mas há uma maneira de contar isso, uma certa maneira de escrever, de colocar numa história – através do estilo, da voz do autor. Por exemplo, recentemente li o “The Catcher in the Rye” do Salinger e ele conseguiu pegar em certas coisas banais e torná-las interessantes, agarrar o leitor pelos colarinhos… mas lá está, primeiro é preciso criar uma história. Encontrar personagens, dá-las profundidade, um cenário, um ambiente de modo a que o leitor não possa escapar. Parece-me ser isso que os grandes escritores fizeram e fazem. Não acredito que haja muita vantagem em escrever apenas para se ser famoso. Não há fama na escrita. Por exemplo, quantos reconheceriam o António Lobo Antunes nas compras? E estou a falar do melhor escritor português vivo…
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