Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Certas pessoas deviam ser internadas. Parece-me uma maneira simpática de encetar mais um desassossego ou, pelo menos, de arbitrar a sentença que considero justa para a situação que trago à baila. Se estranharem a postura implacável que transpareço, têm bom remédio: coloquem na beira do prato. Ser o motivo do acumular de muita saliva na minha cavidade oral é uma péssima ideia, desde já vos digo. Fui paciente, – nem sei como é que consegui aguentar tanto tempo – mas enchi o saco. Sorri contrafeito, empunhei a educação que os meus pais me deram até esvair em raiva. Até que soltei um catártico “f***-se”.
Como vivo num apartamento, tenho a infelicidade de estar sitiado por vizinhos para todos os gostos e feitios, desde os que estão ao encargo de animais domésticos aos que discutem diariamente com a mãe porque ainda não encontraram hobbies ou não receberam o cheque-livro propalado pelo Governo. Apesar de estar cansado e farto desta vida em micro comunidade, a rotina e a azáfama do português de bem – salvé André Ventura – impedem que se possam ouvir tiros de caçadeira em todos os andares do prédio. Era realmente chato, até porque a equipa de limpeza só labuta nas escadas uma vez por semana.
Algumas situações irritam-me, muitas situações causam-me comichão violenta e duas situações tiram-me do sério. A primeira é ouvir com frequência, à boca cheia, que a música fabricada em terra lusitana já deu o que tinha a dar; a segunda engloba todos os acontecimentos nos quais o protagonista é a completa besta do vizinho do segundo andar. Se Deus soubesse que iriam nascer pessoas desta laia, não teria morrido por nós. Agora sabe e arrependeu-se, garanto. Nem ele suporta as atitudes de um quadrúpede assim. É muito bonito dar o corpo ao manifesto sem pensar porque gostamos de praticar o Bem, mas depois é que são elas.
Por vezes, as nossas mães conversam sobre trivialidades enquanto fazem caminhadas. Acontece que o energúmeno joga Playstation – ou outro gadget com comandos dirigidos para um ecrã, porque a minha mãe não tinha a certeza se se tratava do primeiro – e entra em contactos com as bestas amigas. Trata-se de um puro gamer, elucidando a geração Z. O certame desdobra-se em jogos de ação com muita violência e em jogos de futebol à moda portuguesa. Raramente privei com o catraio, mas a imagem formada na minha mente coincide, certamente, com a vossa: um gajo de óculos e repleto de vergônteas a bradar palavras nada calorosas e a direcioná-las, quer aos colegas, quer à obra da ficção.
Eu tenho um sonho: ouvir somente os ruídos que as paredes de minha casa aconchegam. Tenho mais sonhos, mas este é o que mais atende à definição pela impossibilidade de concretização. Já dou de barato o péssimo gosto musical das pessoas que coabitam no prédio, o bater da porta de entrada, os ruídos emitidos pela animália, os mexericos e os cochichos que são trazidos para o corredor comum e a chinfrineira quando chegam garotos oriundos de outras habitações que visitam familiares. Adorava que as situações anteriores fossem evitadas, mas seria aborrecido viver num bunker pelas imagens que nos chegam da Ucrânia.
Anteontem, o meu primo António ligou-me esbaforido a dizer que precisava de desabafar porque tinha acontecido uma coisa terrível e que precisava da minha ajuda. Disse-lhe para vir ter a casa a fim de me pôr a par da ocorrência. Abro um parêntesis para o facto de o António ter uma grave perturbação da fluência da fala. “Bem, n-n-n-nem sabes o q-o q-o q-o que aconteceu: ontem, fui a um bar c-c-c-com os meus am-am-am-amigos e fiquei extrema-mamente bêbado. Não le-le-le-levei carro. Ao regressar a c-c-c-casa, perdi-me e f-f-f-fui dar a uma”. “Mata c******, mata c******, mata c******!”. A interrupção apanhou o meu primo de surpresa e enfureceu-o. Ensandecido, bradou um “ouve lá, m-m-m-minha besta, não sabes que é f-f-f-feio escutar as conversas dos ou-ou-ou-outros?”. Pedi-lhe que não ligasse. A certa altura, soou a campainha. Mal abriu a porta, sentiu um potente murro enrugar-lhe as feições. “É para aprenderes a não perturbar a minha audição quando estou de headphones e a jogar, falante com pouca rede”.