Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Nesta folha digital, em branco, sinto o latejar dos leitores em relação a uma possível súmula da minha primeira semana de trabalho. A folha estava em branco, assim é que é. Agora tem trinta e sete palavras. Consegui poluir a folha com trinta e sete palavras. Perdão. Consegui desonrar este belo documento com cinquenta e sete palavras. A imoralidade do ato descrito merece forte punição. Tirei a virgindade a uma folha que podia ter tido outra finalidade: um origami, um desenho, uma pintura, uma limpeza a fundo entre nádegas. Esta terceira opção não é viável, a menos que possuam impressora.
O resumo, claro, o resumo. Não está esquecido. Dispus-me a acordar diariamente (parece impossível, eu sei, mas a minha força mental, a minha força mental), laborei alguma coisita até quinta-feira (nada de muito exagerado, algo entre o tolerável e o intolerável para ser mais esclarecedor), bebi um sumo de algas com ginger ale do qual extrai sumo prazer e constatei que Margarida Gautier era uma das maiores galdérias da sociedade francesa no século XIX: uma batelada de escândalos sexuais, um sem fim de vícios, um fartote de práticas pouco ortodoxas; mesmo tuberculosa, esta menina era o cabo dos trabalhos para a espécie humana.
Alexandre Dumas redigiu uma obra única e incomparável, – são estes os adjetivos mais frequentes aquando da realização da crítica literária positiva, não são? Na calha, tinha palavras como “genial, ímpar e original”. Não sei se poderiam constar igualmente neste juízo, mas eram as alternativas que reunia – mas esqueceu um pormenor que, quanto a mim, conferia ao livro uma elevação e autenticidade distintas: o mascar da pastilha elástica por parte da personagem principal. A profissão exercida por Margarida (apesar de nunca mencionada), ainda que em part-time, merecia, pelo menos, uma descrição pormenorizada da prática. Os recursos expressivos são outro assunto e a sua inscrição naquela tarefa já ficava à responsabilidade do autor.
O tópico pode conduzir ao levantamento de algumas questões. As centrais traduzem-se em descortinar se no século XIX já se fabricavam ou não pastilhas elásticas em França e se o momento que marcou a introdução da pastilha elástica na “galderice” antecedeu ou sucedeu à escrita do romance. Aqui, a problemática sofre bifurcação: no caso de se fabricarem, verificar se Alexandre Dumas desconhecia a existência ou a conhecia e relegou esse facto da obra, e, caso tenha olvidado, deslindar se foi por falta de gnose ou por vergonha de relatar a triste experiência do moldar da pastilha elástica aos lábios e pousarem sobre estes uma espécie de grumos que parecem nunca sair; no caso de não existirem, analisar exaustivamente a presença de um elemento que se assemelhasse à pastilha elástica e que pudesse ser mascado e examinar a razão pela qual não fabricavam a pastilha elástica, que procedimentos encravavam a conceção final, que pessoas objetavam e formavam resistência quanto à sua disseminação e qual era o comportamento adotado pelos políticos que governavam o país neste período.
A prostituição – não especificada – e a pastilha elástica mantêm uma relação antiga. É a sensação que me encarcera. Pessoas de género indefinido – em 2023, facilitar quanto à não inclusão é temeridade a mais – perfilam-se nos passeios ou na beira das estradas que separam matas e bosques e, através do olhar simultaneamente terno e provocador, apelam a uma interação mal esticam a pastilha elástica com a ajuda do indicador e delineiam movimentos circulares. A subtileza é tanta que, por vezes, a pastilha elástica se transforma num finíssimo cordel de cor branca, vermelha ou verde. As/os prostitutas/os que labutam num estabelecimento noturno e que obedecem às regras de um patrão não prescindem da pastilha elástica porque lutaram pela sua causa e tornaram-na num baluarte da profissão que exercem. No lado oposto do espetro, ainda há portugueses que necessitam de pedir autorização para beber água. Se acreditarmos na mudança, a emancipação está ao virar da esquina. Todos os profissionais de cama estão em sintonia. Só assim se derrubam regimes.
Alexandre Dumas enfeitou Margarida Gautier de luvas, leques e múltiplos tecidos. Faltou a pastilha elástica. Educou-a para o casamento, mas sem sucesso. Ela preferia borgas e grandes festins. Nada contra, não julgo. Até porque defendo a liberdade individual. Assim como defendo a pastilha elástica e preservo a sua imagem na sociedade e nas profissões nas quais está inscrita.*
*NOTA: este texto não foi produzido por ter pisado três vezes pastilha elástica – duas no mesmo dia – e ter sucumbido a uma raiva tão forte que poderia ter conduzido perfeitamente a um enfarte. Além disso, a escrita deste desabafo não foi concebida para esconder a minha inaptidão para mascar pastilha elástica e para contar que ainda não me livrei dos resíduos nos lábios. Sustento ainda que esta composição não pretende manifestar o meu desagrado por ter engolido – inadvertidamente – uma das pastilhas elásticas que masquei no decurso desta semana. Finalizo este juízo literário dizendo que suporto perfeitamente barulhos enquanto se ingerem/mascam produtos e que os acho extremamente agradáveis.