Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
O que Cristina Barros fez a um anão foi pura maldade. A partir daquele momento, o atendimento efetuado nos serviços académicos nunca mais foi o mesmo. Aos que clamam pela introdução nesta história, não tenho o que lhes fazer. A atitude é demasiado jocosa para que passe impune durante dois ou três parágrafos. Aquele universo, que parecia não ruir por nada deste, sucumbiu. Aquele anão pressentiu a mudança, anteviu uma revolução, vaticinou deixar a marca na história do atendimento nos serviços académicos. Toda a gente tem conhecimento que as grandes revoluções começam em espaços menos amplos do que praças ou largos. Tais como? Tais como em estabelecimentos onde somos atendidos. E, claro, em serviços académicos.
Mal transpôs a soleira da porta, o anão dirigiu-se à fila de atendimento prioritário. O andar confiante e a placidez que emanava eram denotados pela presença dos óculos escuros na cabeça. A postura reta, a confiança no olhar. Um regalo para quem o viu, disse. Cristina Barros, então estagiária no atendimento ao público, – ou aos selvagens e sem escrúpulos, como se refere às pessoas que necessitam dos serviços académicos – observa o anão a encaminhar-se para a fila das regalias em termos de espera e interpela-o:
– Desculpe! O senhor não pode integrar essa fila. A sua chamada será efetuada nesta e ainda tem umas quantas pessoas à sua frente. Sei que não fez por mal, mas venha para cá, venha.
– Oiça! Eu vou continuar nesta fila porque tenho instruções expressas para tal. Vim cá na semana passada e disseram para vir para a fila do atendimento prioritário. Ainda por cima, o assunto é urgente. Tenho dupla razão para aqui estar. Mas eu perdoo, provavelmente não lhe chegou a informação. – respondeu o anão com serenidade.
O sangue apanhou o elevador para a cabeça de Cristina:
– Escute uma coisa! Eu estou a dizer-lhe para respeitar uma ordem! Peço-lhe, novamente, que se dirija para onde o mandei. Ninguém me reportou a situação que descreveu, as minhas colegas ouviram o seu caso e nenhuma lhe deu razão ou pareceu conhecer aquilo que disse. Além disso, não posso sair do meu posto porque não faço distinção entre pessoas e a mais importante é sempre a que estou a atender.
Instalou-se a confusão. O balcão que resguardava o posto de atendimento podia ser considerado alto porque uma pessoa de estatura média só conseguia apoiar os cotovelos. Ora, na ótica de quem desempenha a função que Cristina desempenhava, o anão aparecia e desaparecia conforme a aproximação ou afastamento daquele balcão.
O anão atravessou a fila, sorriu ironicamente e proferiu palavras que a fúria assolou:
– Mas a senhora é estúpida ou faz-se de estúpida? Eu ainda não entendi bem. Você não vê nada distinto em mim? A sério que não vê? Eu sou anão! – bradou o atendido.
– O senhor até podia ser daqueles que andam em cima daqueles apoios para os pés, Pauliteiro de Miranda ou Careto de Podence. A mim, não me interessa! Aqui dentro, respeita aquilo que os funcionários dizem, entendeu? Raio do homem! – enfureceu-se Cristina, antes de arquitetar verborreia que só era audível pelas duas pessoas na dianteira daquela fila.
A cólera apoderou-se do anão. Subjugado ao estado que o definhava e em passo apressado, chegou-se ao término do balcão. Cristina Barros perdeu, por momentos, o foco. Antes de se içar na cadeira, assombrou-a a possibilidade de o anão a querer agredir. Mas como? As cadeiras estavam todas ocupadas e não existia sequer uma irregularidade convexa no piso que o capaz de o içar. De súbito, uma mão que empunha um papel bateu no mármore gélido e o estalido conferiu-lhe vermelhidão instantânea:
– Leia esse papel então! Quer dizer, com o atestado de ignomínia com o qual nos brindou, arrisco-me a dizer que nem ler sabe! Não há problema, eu sintetizo. Esse papel foi-me dado pelo médico porque, como é de senso comum, eu sou uma pessoa que porta deficiência. Um anão é um ser com deficiência ao nível do crescimento! Não diga a ninguém que tem um curso superior, se faz o favor! Que vergonha! Nunca me fizeram passar por isto!
Ana Cristina Barros, preenchida pelo rubor que caracteriza a vergonha, revolveu o papel na diagonal e tentou suplantar o erro crasso que cometeu:
– Ah, com papel justificativo da sua condição é diferente. Já podia ter referido que possuía documentação, assim teríamos evitado este mal-entendido. Coloque-se na fila prioritária então. Já vêm atendê-lo. É só um momento. Quer um cafezinho? Um copo de água? Um rebuçado? Outra coisa?
O anão não respondeu e respeitou a ordem que lhe fora dada. Chateado, mas cumpriu. Cristina continuou a atender alunos, pais e tutores. A sala respirou de alívio por não presenciar desacatos. Quando o civismo se evidencia, percorre-se metade do caminho para que a civilização não cometa imbecilidades.