Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
A amálgama entre a aspiração e o alcance está para a alquimia como a artimanha para o ávido que argumenta. A existência dos que se encantam com a espiritualidade enforma e exulta a Eminência, enquanto ser eterno. A inexorável imensidão do infinito intensifica a ignomínia dos mais insatisfeitos. O orgulho na obediência observa a obsoleta ociosidade ocupada pelo ortodoxo. A última usurpação da ubiquidade de um uivo ultrapassou a urgência da utopia urbana. As aliterações que acabei de compor obrigaram-me a uma pesquisa – ainda que considerada breve – centrada nas páginas dos dicionários que salvaguardo na estante mais longínqua do meu quintal.
Não reconheço aliterações de destaque aos pensadores da Humanidade. A probabilidade de estar equivocado é enorme. Mas o que é a vida, senão o maior equívoco? Comparativamente à vida, este é um dos mais ínfimos. Nas cinco frases que construí, foquei-me num recurso expressivo que sempre me fez sonhar e que encaixa na pequena esfera de ferramentas que circunscreve a minha escrita. Este mecanismo textual alimenta as vísceras daquilo que considero um hobby e uma manhã, tarde ou noite bem passadas comigo. A relação entre a aliteração e a solidão sentida pelo autor é o elemento que alinha todo o processo que antecede a transposição das ideias para a prática: o pensamento.
O sentimento de que a fanfarronice e arrogância se evidenciaram exala. Até à data, nenhum notário formalizou e rubricou contra mim um atestado de falta de tudo e mais alguma, incluindo reverência injustificada às muitas palavras que navegam no oceano vocabular lusófono. Uma burocracia necessária e premente, ao contrário de tantas outras. Escolhi este momento para dizer algo que incapacitará o esboço de um sorriso, induzirá ao suicídio a la moda de Camilo e chocará os fiéis de Santo Agostinho – porque o autor de Confissões transformou uma vida condenada ao pecado moral e sexual e à massagem do ego em esperança, através da aprendizagem do significado da oração e do descanso nas palavras de Jesus Cristo, mediador entre Deus e o Homem: a burocracia não acabará e fincará o pé, porque é erva daninha. O primeiro spoiler que dei ao mundo foi premeditado. O calculismo do verme destapa a pontinha do véu, espreitando covardemente.
A aliteração está à mesma distância do ser humano do que o empunhar um garfo e acionar os movimentos que nos permitem comer. As que produzi no primeiro parágrafo significam um vácuo como aquele que existe quando não preenchemos, na totalidade, um saco ou recipiente. E enfadam, eu sei que enfadam. Mas qual relação entre a aliteração e a solidão da alma? Não há relação, pura e simplesmente. Geralmente, as pessoas enfurecem-se com quem lhes tenta dar bailarico e quem pensa em ludibriá-los, têm pouca paciência para delongas e não suportam que a resolução dos seus problemas fique adiada por meras (in)formalidades. Somos imponderado, impulsivos e, por consequência, latinos e lusos. A ordem do corolário está incorreta, não está? Não será ao contrário? Isso agora também não é importante. Canalizemos energias para a aliteração, verificada em dose dupla, quatro frases antes desta.
Na escrita, a burocracia pode rapidamente metamorfosear-se em aliteração. A “palha”, como denominam os professores que tivemos em tempos de escola. Uns adoravam o enchimento da pergunta. Outros não, e faziam questão de o dizer na entrega dos testes de avaliação. Para mim, só há duas razões para se gostar de palha: ou porque se participa na preparação de morcelas, alheiras e chouriços para os lados do Alto Minho ou porque se vai registando as várias fases da imaginação – ou alienação – do aluno ao longo de um ano letivo. Apesar de não concordar com a postura dos professores que comem palha de bom grado, prefiro pensar na primeira hipótese como explicação para o fenómeno, porque eles não são assim tão bem remunerados e, quando assim é, não compensa levar trabalho para casa.
Não percebo a fixação que se tem pela burocracia escrita, em particular. Custa-me entender o facto de William Somerset Maugham escrever o Fio da Navalha somente para contar a história de quatro ou cinco pessoas sem a perícia de contornar aquilo que não interessava e compará-la à sua. Mas alguém lhe pediu uma caracterização das sociedades inglesa, francesa e americana do pós I Guerra Mundial? Alguém se interessa, na verdade, pelo egoísmo que pautava os costumes, pelo cumprimento de preceitos socialmente tidos como atos louváveis e exemplares? Alguém se interessa pela mudança, ao longo das décadas, da visão de cada personagem sobre o mundo e sobre as peças do seu xadrez? Alguém se interessa pelos livros que acabam bem ou mal, ou pelas histórias de amor que deram certo ou errado? Quem é que quer saber do sexo, das mulheres, dos homens, da paixão, da espiritualidade? O livro é um instrumento burocrático e só pega nele quem não tem nada para fazer, quem se entretém com burocracia na escrita literária. Arranjem um emprego!
A segunda evidência em torno da fanfarronice e arrogância pode ser desculpada pela demanda do sono – esse bem precioso! – e pelas atividades realizadas até ele chegar. Vou largar o YouTube e deixar de subscrever os canais partidários. Da esquerda à direita. Nos debates que marcaram o início das Legislativas e posteriores campanhas, há uma promessa comum a todos: o extermínio da burocracia. Fiquei entusiasmado e encetei vários pontos no meu bloco, sobre tudo e mais alguma coisa. Então, juntei tudo neste texto.
Quando oiço algo que me excita, fico compenetrado de imediato. Depois, não mais largo o tema até rompê-lo. Normalmente, com bizarria, profunda superficialidade e muita arrogância. Desta vez, excecionalmente, reconheço que ultrapassei os limites visados. Mas o que é a vida sem exagerar aqui e ali?