OPINIÃO: Radicar texto (não) monocórdico num conjunto de interpretações

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Quando pouco ou nada de relevante se têm a defender ou refutar, embaraça-se a introdução de uma crónica. O atrito domina todo e qualquer argumento plausível. A inércia esparrama as posições tomadas em prol ou vincadamente antagónicas em relação às ideias expostas por um mortal como a maioria dos comuns. E dos incomuns, também. Mingam as palavras, fina-se o discurso. Os vocábulos também podem reservar descanso no plano de férias. Porventura, uma das decisões mais democráticas e livres que tomámos (ou à qual estamos perentoriamente condenados). Sobra o silêncio, com dosagens de acalmia e sordidez variáveis.

Este texto não tem tónica. Até porque centrar um texto num tema tem traços monocórdicos e fastidiosos. Reduzir um conjunto de palavras às eleições, à programação da TVI, a Israel, à Kate Middleton, ao PRR ou ao Somos Portugal será um caminho que necessitemos de percorrer? Poderá ser necessário, sim, mas eu nunca me adaptei às galochas nem ao calçado que a minha avó usa no pequeno terreno que trabalha. Refiro-me a uma espécie de chancas, mas de outro material que não a madeira. Sempre que a observo, sou tomado por um assomo de comoção, porque nunca a vejo a sujar a meia ou o próprio pé. Verdadeiramente enternecedor.

Apesar de não ter tónica definida, este texto radicará num conjunto de interpretações por quem se atrever a lê-lo. Sim, atrever a lê-lo. Hoje em dia, o livro tornou-se um objeto tão arcaico como a roda ou o arado. Os jovens leem muito poucochinho, porque se entretêm com a volatilidade e pouco erudito que paira em grande parte das redes sociais. Poupem-me a este discurso. Eu desloco-me de comboio semanalmente e contemplo uma realidade distinta: entre carruagens, já vi vários exemplares do último do Minh’alma, uns 15 ou 20 daquela magnum opus da Fátima Lopes que agora me falta à memória e vários do escritor que incita, de forma subtil, a dizer f*****. Vi dois ou três exemplares já gastos e repletos de apontamentos em inúmeras páginas de uma obra intemporal de um pivot carismático, O Anjo Branco. Por isso, não me atirem teses infundadas às ventas.

Por vezes, a vocalização é uma atitude muito feia. Muitas vezes, efetuam-se vocalizações ao invés de se desenharem e colorirem silêncios agradáveis. O vazio com o qual eu convivo quando me desloco no comboio ilustra na plenitude um silêncio agradável: cada pessoa com o seu apetrecho literário ou com os seus headphones. Às vezes, com os dois aparelhos em simultâneo, o que também resulta magnificamente. Já apanhei bebés a bradar e a juntar palavras numa frase impercetível a ouvido novo e em ótimo estado; telemóveis a disparar ruídos que remetem para um mar de gente num concerto da Mariza; discussões sobre o mérito envolto na ascensão de uma jornalista enquanto figura pública (deputada eleita pelo CDS na Assembleia da República não sei em que governo) e do impacto que a discussão protagonizada com António Marinho e Pinto teve no aumento do consumo de cannabis nos estudantes de Ciências da Comunicação / Comunicação Social, a partir do ano letivo que a sucedeu até aos dias de hoje; e, um cão a defecar por duas vezes num espaço de 10 minutos, antes de o revisor ter expulsado o seu dono e pisado – parcialmente – aquilo que o estômago do animal rejeitara. Pensei na porta-voz da defesa animal, não sei explicar a razão. Agora, tudo está mais sereno. O silêncio abunda, as pessoas respeitam o protocolo e mostram a etiqueta. A última que vi era da ZARA e, por lapso, o passageiro sentado ao meu lado não a escondeu.

Sentiram que a monopolização deste discurso indireto podia estar a fermentar, não sentiram? Foram com demasiada sede ao pote. Nunca faria isso ao leitor, porque não gosto que a pratiquem comigo. É uma atitude tão egoísta quanto a de proceder à redução mamária. Não se entende o altruísmo por trás das convicções que motivaram a redução. Ah, a coluna, o peso, o desconforto. E mais? O/a vosso/a parceiro/a ficará contente? Pediram a opinião dele/a ou só foram aconselhadas por especialistas? Ah, mas quem decide sobre o meu corpo, sou eu. Pronto, não vale a pena discutir o assunto. Estou a ver que não conhecem – ou decidiram ignorar – um dos lemas mais importantes de Baden-Powell, símbolo máximo do Escutismo mundial: deixar o mundo um pouco melhor do que o que o encontrámos. Se sentem que deixam o mundo um pouco melhor ao reduzir o peito, reduzam-no. O individualismo sobrepõe-se ao coletivismo desde os primórdios. Eis a prova cabal.

Para gáudio dos que (ainda) não fecharam o separador, destaco um prato típico de minha casa só para vos fazer crescer água na boca: arroz com lulas soberbamente temperadas. A minha mãe é um ás na cozinha e nada me contenta mais do que a habilidade para cozinhar aquela que, neste momento, é uma das minhas refeições prediletas. A experiência gastronómica eleva-me a um patamar celestial, quando nos dirigimos para o zénite, antes de sair na primeira saída da rotunda das Alturas: um campo cultivado, onde corre uma brisa morna e os pássaros chilreiam, em fá, a música Somos Livres, de Ermelinda Duarte; lá ao longe, um camponês encostado à sombra de uma árvore que não é identificável àquela distância; aproximando-nos, reparamos que ergue à altura da fronte Sentir, de uma autora que organiza TALKS. A mocidade está ali, à sombra. E a paz descansa e relaxa com ela.

Felizmente, (ainda) há quem trate temas importantes, com a devida elevação. Depois, existe o comentário político, futebolístico, ligado às Artes. Vai-se a ver e isto radica mesmo num conjunto de interpretações.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

error: Este conteúdo está protegido!!!