OPINIÃO: Penso que estou em condições de afirmar que me assola uma crise de valores

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Prometi, a mim mesmo, encetar este texto quando encontrado o novo presidente da Assembleia da República, a casa de piso democrático e com janelas, portas e telhados que não o são. O cargo está, exclusivamente, destinado aos 230 deputados eleitos e não aceita currículos exteriores. É pena. Sou de uma das áreas das Ciências Sociais, amante de chinfrineira e balbúrdia interpartidária e um espectador – mais do que atento – curioso acerca do que lá é dito e proposto. Organizar duas ou três ideias num raciocínio balizado pelas palas ideológicas, ligar o microfone premindo aquele botãozinho quadrado, urrar, desligar o mecanismo e sentar-me. Enquanto se escuta a opinião contrária, revolvem-se documentos, teclamos no computador ou no telemóvel a uma velocidade estonteante, esboçam-se sorrisos, soltam-se gargalhadas, interrompem-se discursos, limam-se e pintam-se unhas. Acusem-se os sedentários que não gostavam de fomentar o seu desporto no Parlamento.

Uma vez eleito e encerradas as polémicas que marcaram a última semana, exponho uma última que não vi discutida em canal informativo algum, em fóruns ao estilo do Prós e Contras, em crónicas de jornal e de pasquim, na Passadeira Vermelha, etc. A crise de valores que atravessa o canto luso e é versada por inúmeras personalidades, públicas ou anónimas acentua-se na Páscoa, digam o que disserem. A expressão “atravessar uma crise de valores”, entre muitas outras ocasiões, é proferida quando a tradição não é respeitada e os comportamentos padronizados são adulterados por modernices. Antes de mencionar o flagelo que diagnostiquei, deixo uma questão para debate sem incêndio e com elevação: a utilização da tese “atravessamos uma crise de valores” surgiu como resposta ao lançamento do primeiro single de António Antunes?

O estudo que efetuei reporta a dados recolhidos nos concelhos de Vizela e Guimarães e debruça-se sobre comportamentos típicos em tempos de Páscoa, nomeadamente ao nível da propriedade privada. A análise incide sobre toda a higienização dentro e fora de portas e movimentos reparadores de fachadas – antecedentes ou consequentes – efetuados no fim de semana santo. Numa crónica publicada nesta sede, há alguns meses, referi que quem lavava passeios enquanto chovia devia ser mandado para o degredo, posição que continuo a defender. Contudo, por lapso, olvidei abrir exceção ao tempo pascal. O desabafo de hoje entronca no anterior e denuncia as restantes inclemências que são perpetradas nesta época. O tempo que devia simbolizar paz, concórdia e solidariedade significa, na verdade, divisão, afronta e desrespeito. A cisão em Portugal é tão evidente como a existente na camada do ozono. Aqui, no nosso cantinho, existem duas espécies diametralmente opostas que contribuem para a guerra que se avizinha: as que higienizam a casa para receber a cruz e as que se marimbam para as limpezas e que as acham uma cruz. Não descarto que possam coexistir alas mais moderadas, entre as quais as que organizam a limpeza semanal – como é hábito, ou tradição – e que não recebam a cruz e as que limpam a casa apenas 12 vezes – ou seis, ou uma – por ano. Sei, com base na informação que reuni, que grande percentagem do eleitorado migra para os polos mais radicais da discussão.

Nas cidades mencionadas, o fim de semana vestiu-se de impermeáveis e casacos à prova de chuva. Apesar disso, regozijei-me com a purificação de passeios, de jardins, de varandas, de pátios, de cortinas, de tapetes, de carpetes, entre outros. Assisti, também, com profundo entusiasmo, ao branqueamento de pequenos muros dentro e fora de habitações. Além de tudo isto, comoveu-me a lavagem de pequenos troços de estrada – pessoas que vivem à face da faixa de rodagem – e de alguns gradeamentos que resguardam casas ao leme de um esfregão. Tudo isto, repito, na presença de algo necessário, mas a certa altura incomodo: a precipitação. Na véspera da Páscoa, recordo-me de ir ao barbeiro e de, num período de escassos minutos, contemplar um universo de oito/dez pessoas a repetir as práticas que em cima descrevo. Duas ou três lágrimas foram vertidas. Escusado será dizer que a minha visita ao barbeiro teve que ver com o extermínio de pelos faciais. O asseio facial é, tal como a higienização da propriedade, comum em tempo santo. A correlação é tão sólida e evidente que não vale a pena destrinçá-la e servi-la numa bandeja.

Na casa dos meus pais, nada disto é praticado. Desde 2021 que me sento com eles no sofá e lhes tento explicar as vantagens de adotar esta posição. Tentei convencê-los a higienizarem o apartamento em todos os aspetos e expliquei todos os argumentos que compilei dos anos anteriores e juntei o deste ano:

  • Argumento de 2021: Uma das principais razões para o mundo estar sob constante ameaças de conflitos militares e nucleares reside no facto de as pessoas nãos se unirem em torno das limpezas de Páscoa. Imaginem se fosse criada uma Comissão Independente por distrito (com 200/300 membros) exclusiva para a semana que antecede a festividade capaz de se encarregar da implementação e fiscalização das limpezas. Reparem, ninguém ia agredir ou batalhar com um companheiro que lhe chegou o Xyrazel para a correção de manchas numa parede;
  • Argumento de 2022: Isto é o futuro. Enchemos a boca para falar de escassez de água e dos recursos hídricos, mas durante o ano é poupada água? Regam-se campos vastos, tomam-se banhos de imersão com aqueles sais e efervescências, a restauração lava quantidades intermináveis de pratos e copos, o Aquashow e o Slide & Splash continuam à pinha no verão, as pessoas continuam a beber litros de água por dia quando podiam bem passar com um ou dois copos. Não há civismo. Quando é preciso, as torneiras estão sempre fechadas. No fundo, a água é o país desde 1143;
  • Argumento de 2023: É a última vez que vou abordar este tema. Pedia, encarecidamente, que acedessem ao meu pedido. Não vos custa rigorosamente. São duas noites sem dormir. Estão na casa dos 50, mas não é desculpa. Garanto-vos que aguentam sem dificuldade. Se chover, limpamos ao som do Tom Jobim. A Águas de Março toca incessantemente e nós fazemos o que temos no horizonte. É o fim da canseira. E a Páscoa corre de feição. É a promessa de vida que mora nos nossos corações. Vá lá.
  • Argumento de 2024: Os meus pais tiveram a ousadia de me colocarem as malas à porta. Desejaram-me boa sorte e um futuro risonho! Deram-me dinheiro para a viagem de ida que ainda não tinha planeado.

Fiquei como um tolo em cima da ponte. Sem eira, bem beira. Estou a viver numa tenda. Não há paredes, nem passeios, nem troços de estrada, nem jardins. Continuo sem higienizar a minha Páscoa. Penso que estou em condições de afirmar que me assola uma crise de valores.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

error: Este conteúdo está protegido!!!