OPINIÃO: A sintonia é chata e ninguém me demove desta opinião. Vamos recapitular – enfurecer é sadio

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Estabelecer uma diatribe face aos desassossegos merecia estar na berlinda do indivíduo comum e mais do que isso. Debater acirradamente, dialogar com Satanás na retina e argumentar com a descarga elétrica que assomou Hitler desde o declínio da República de Weimar mostra-se imperativo num universo à distância de uma FaceTime – mencionei a funcionalidade da Apple porque é (quase) tão habitual ver um iPhone sair de um bolso de uma parte constituinte da indumentária como ser surpreendido pelas produções artísticas levadas a cabo por Bordalo II. “Mencionar um artista plástico num texto dá direito a exaltar a capacidade intelectual acima da média que o autor desta breve crónica concentra?” Que pergunta parva. A resposta é “claro que sim. Que outros requisitos existem? Perceber, realmente, de artes plásticas?”. O aparte foi longe de mais. Fica essa sensação.

Acolher a raiva é capitalizar a vontade de ser algo mais do que um mono. Embuchar e esboçar cara de pau irrita a camada mais superficial da pele. Menos do que ouvir qualquer composição musical da autoria de Tonicha – sem poesia de Ary – ou Florência, é certo. Mas irrita à mesma. A pequena ira subdivide-se em três castas: (1) vernáculo seguida de um murro/golpe em qualquer objeto, (2) visão colérica, argumentos numa cama de gritos e envolvidos num lençol de ironias extemporâneas e provocações variadas e (3) aproximação entre os intervenientes, que vão desde o sussurro que finca pé no coito ao empurrão e outros comportamentos violentos. Admito que outras castas possam estar a ser excluídas, mas reporto somente as que vivenciei. Cá dentro inquietação, inquietação, é só inquietação, inquietação. Desta feita, não me aventurei em apartes tão longos.

Ninguém perguntou, mas eu respondo. Pensei em dar-vos um exemplo para cada situação irada que exibo. (De)posta a ilustração, podem ir à vossa vida, sem cometer pequenos delitos. Senão, batem com as costelas na tropa mais dia, menos dia. Ainda bem que estamos todos de acordo. Pensei que a irritação se apoderasse de mim, – o hábito faz o mesquinho – todavia não aconteceu. A sintonia é chata e ninguém me demove desta opinião. Já não utilizava a conjunção coordenada adversativa há uns textos atrás. Todavia, sinto-me bem ao voltar a pressionar esse gatilho.

O que se segue não contém veracidade e corresponde a cenários concebidos mentalmente para fins lúdicos ao nível da escrita. Aviso: desliguem os telemóveis. Se me estiverem a ler no telemóvel, não têm de quê.

  1. A vossa equipa – especificar a modalidade aqui é tão útil quanto Rita Olivaes ter proposto o nome de Adriano Correia de Oliveira à RTP para integrar o Festival da Canção de 1972 – está a vencer por 1-0 e a jogar bem. Merecia uma vantagem mais dilatada, mas não tem sido feliz. E eis que, a três minutos do fim, sofre um golo contra a corrente do jogo. Abate sobre ela uma profunda desilusão e sobre o espectador e adepto uma profunda desilusão multiplicada por 100.
  2. No final do jogo, o telefone toca e um amigo convida-o para tomar café, ordenando que a pessoa se vestisse prontamente. Esta acede ao pedido, até porque precisa de desanuviar daquele desaire que pode ter comprometido a conquista do campeonato. Mal chegam ao café/bar, os dois juntam-se ao restante grupo, que agregava amigos e conhecidos. Ao mesmo tempo que se pede uma cerveja em miniatura, ouve-se a frase “as letras das músicas da Mariza Liz são mais profundas, mais líricas, mais bem escritas, mais dignas de reconhecimento do que as de A Garota Não”. A pessoa cessa o diálogo com o empregado, brada “do que A Garota Não? NÃO!” e inicia uma discussão acesa com quem proferiu a boçalidade durante duas horas, à medida que emborca álcool desmesuradamente.
  3. Já borracha, a pessoa sai à noite com os restantes colegas rumo a uma discoteca cujo nome não pretendo publicitar por ser demasiado penoso. No caminho para lá, atrás do banco do morto, a pessoa convenceu o “DJ” da viatura a musicar a viagem. O DJ acedeu e escolheu uma playlist ao calhas. A pessoa prometeu a si mesma não tecer comentários desagradáveis quanto às canções povoadas naquele elevador em linha reta para uma possível diversão noturna. Até que o dono do telemóvel, a meio da primeira canção, muda para a seguinte. Apesar da embriaguez, a pessoa sussurra ao ouvida do DJ um “se fizeres isso outra vez, vais dar-te mal”. Ao escutar aquela ameaça, o condutor parou o carro, obrigou os amigos a saírem e a resolver a situação. Os empurrões tomaram conta daquela beira de estrada, até à intromissão dos restantes elementos do veículo.

Vamos recapitular: enfurecer é sadio. Ainda para mais quando alguém muda de música a meio da que estava a correr. Só alguém doente se comporta dessa maneira. Quem é que nunca sentiu no peito, em segredo, uma voz a dizer para teimar, teimar sem medo? Vá, acusem-se! Há tanto para andar e a noite está tão fria. Não cedam ao jugo da Paz, à “beleza” que caracteriza a harmonia na relação com o outro e ao remanso. Só se vive uma vez e morre-se na mesma medida – não creio nas histórias de quase morte ou de morte por breves minutos, por mais evidências científicas que as envolvam; caso contrário, era fácil e, até, conveniente morrer por breves instantes quando somos engolidos pela pilha de roupa que urge ser passada a ferro, pelo pó renovado à mínima brisa e pela asfixia laboral quando nos apetece mandar a responsabilidade às urtigas. O aparte excedeu-se, mas há sobejos mais censuráveis. Não se enfureçam por isto. Parece-me imaturo.

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