Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Em cada esquina, coluna de jornal ou programa de comentário televisivo, a cisão. O “mundo nunca mais será o mesmo”, dizemo-lo com toda a convicção. Vemos, ouvimos, lemos. Ousadamente, escolhemos ignorar. De que vale a impertinência acareada quando os ouvidos podem adquirir e, posteriormente, vender o que lhes fora vendido? O vulgarmente designado “ouvido de mercador” representa a generalidade da faixa etária com idade compreendida entre os três e os onze anos que, no momento da celebração do nascimento de Jesus Cristo, o poupa do vagar concernente à destruição selvagem do bonito embrulho: inserida num dos vastos campos do diálogo (reprimenda, desabafos do coração estilhaçado, comícios de partidos políticos, ensino de disciplinas, pessoas responsáveis por realizar biscates em nossa casa e dicas dadas por si a fim de mitigar os estragos no aparelho reparado, etc.) constrói uma espécie de bolha que sustém a chegada do som produzido por outrem.
A falta de chá é paradigmática da sociedade de hoje. Em princípio, a falta de chá é, também, paradigmática da sociedade de ontem, de anteontem e da semana que terminou. Repeti a palavra porque um professor que tive na Universidade, sem esconder o papo que engolira a maçã de Adão e as bochechas ruborizadas na aula depois do almoço de quarta-feira, jurou ódio eterno à palavra “paradigma” e à respectiva catrefada de filhos e familiares. Um dia, uma aluna caiu no erro de lhe pedir explicações. Ele respondeu, dizendo que eram assuntos relacionados com a Teoria da Comunicação e com a disputa pela ribalta das Ciências Sociais entre Karl Popper e Thomas Kuhn. O docente cria na aprendizagem ao estilo da bofetada e dos tropeços pelos quais o Homem, por certo, passaria e era contra a constituição do paradigma como unidade de base para se edificarem novas concepções e respostas. No contra-golpe, a aluna admitiu ver a vida pelo prisma de Kuhn. Ele disse “está bem” e continuou a aula.
Convinha-me referir a falta de chá (verde) – esta semana ainda não o bebi – mas não há tempo para mais apartes. Venho falar-vos da (…) de educação. As reticências que repousam nos parêntesis na tentativa de omitir o termo “falta” surtiram efeito ou mais valia ter substituído por um sinónimo?
De qualquer forma, a relevância é insignificante para o tópico de hoje: o trato nas casas-de-banho públicas. Dito isto, o leitor pode depreender que nos espaços que costumo frequentar se passam coisas, no mínimo, insólitas. Têm razão. No meu entender, acontecem mesmo e estão a deixar-me profundamente desassossegado. Entre elas, a mais grave prende-se com o facto de o último não cumprimentar quem lá se encontra. Leitor, comece por encerrar as mandíbulas! Com essa atitude, não saímos do marasmo existencial que nos aglutina. Oiça as razões na íntegra e, depois, ajuíze porque concedo arbítrio para tal. Atente na argumentação.
Comecemos, pois, por compreender a definição de casa-de-banho pública, segundo a minha pessoa. Todos os espaços com uma fila de urinóis, pequenas cabines munidas de sanita (com ou sem companhia de piaçaba) e lavatórios situados em espaços que sejam frequentados por todos os membros da sociedade a partir do momento em que se zanguem com o fraldário e as que, por motivos de ordem variável, limitem o acesso aos cidadãos são considerados casas-de-banho públicas. Sem vincar a falsa modéstia, parece cristalino. Até prova em contrário, não há definição mais aproximada e concisa do que minha. De tudo o que já li e pude comprovar, nada se equivale. A minha família aborda esta problemática há uma infinidade de gerações, mas a profundidade total só se vislumbrou com o trabalho que tenho vindo a redigir.
Perante a exposição descrita, constatam-se quatro tipologias de bípedes:
A) O bípede que não está familiarizado com pequenos sacos de chá e com o recipiente que o acondiciona – o bule, o objecto ao qual a Disney atribuiu capacidades mágicas – entra em estabelecimentos públicos mudo e sai calado. É incapaz de vocalizar uma saudação. Numa casa-de-banho pública, esta espécie perpassa a porta e dirige o olhar para o chão. Às vezes, de olhos quase fechados;
B) O bípede que ingere a porção suficiente para dar um iogurte caro aos pulmões e vocaliza uma saudação à escolha, entre os 20 e os 20.000Hz, quando está na presença de desconhecidos, conhecidos, amigos da onça ou amigos do peito, mas que não reproduz em casas de banho públicas por puro pejo. Denota-se, neste tipo de gente, uma capacidade atlética incomum porque são extremamente rápidos, quase tanto como o Usain Bolt.
C) O bípede que não segrega espaços públicos e saúda todos os que nele se encontrem. Por norma, são pessoas esbeltas, altruístas e inteligentíssimas. A acrescer, por iniciativa própria, prontificam-se a responder aos inquéritos que são enviados via correio electrónico e a deixar sugestões de exame minucioso e ferramentas para recolha sólida de bases de dados.
D) O bípede que hiperboliza o tipo de comportamento anterior, quer na repetição da saudação acompanhada pelo aumento gradual do volume até o visado encetar a prática insultuosa, quer na tentativa de arrombar as pequenas cabines por incapacidade de domesticar a tamanha boa educação que os assiste. Aliás, esta gama não admite a não saudação aos companheiros de sumptuosas micções e defecações. Faz-me lembrar uma pessoa que quer resolver um conflito entre dois amigos, mas diz a um deles para ficar em casa.
Já me chamaram de “pervertido”, “depravado”, “doente” e “tolinho” por estar de bloco em riste e com o tripé montado em várias casas-de-banho públicas do país. Sempre saudei quem entrava e sempre saudei ao entrar no espaço público e, apesar das agressões verbais, nunca ripostei porque mantinha o foco no meu trabalho.
O mundo é um lugar injusto porque nunca favorece os bem-educados na medida exacta. Vivemos, sem dúvida, tempos conturbados.
P.S.: tenho bebido imenso chá e pode estar a fazer-me mal. Aguardem mais informações sobre o meu bem-estar.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação
