Decorreram ontem, dia 30 de janeiro de 2022, as eleições legislativas antecipadas provocadas pelo chumbo do Orçamento de Estado. Na generalidade, e sem prejuízo às grandes derrotas partidárias subjacentes, a grande derrotada da noite foi a Democracia Portuguesa. A ascensão da demagogia, a diminuição do pluralismo democrático – de 10 para 8 forças partidárias -, tão essencial no sistema de freios e contrapesos que é uma democracia, a perda de deputadas e de representatividade racial são os principais marcos negativos da noite.
Antes de mais, para deixar tudo claro, identifico-me tendencialmente à esquerda do espetro político – um esquerdalho, basicamente -, portanto o presente artigo pode ter uma certa inclinação. Seria intelectualmente desonesto se não vincasse isso mesmo.
Sem prejuízo a isso, detenho maior respeito por todos os partidos da direita democrática que, tal como os da esquerda democrática, garantem a longevidade da democracia. Democracia esta, contudo e como indicado, fragilizada após estas eleições. Perdemos todos, apesar de se ter cumprido a vontade soberana do povo que, no fundo, é o mais importante.
Sucintamente podemos resumir – de uma forma arcaica, sublinho – a democracia em dois pilares. A liberdade e a igualdade. São estas as suas bases, contudo, quando levadas ao limite são amplamente antagónicas e é esta repartição que divide o espetro político entre, respetivamente, direita e esquerda. Nenhuma está mal ou bem, ambas são necessárias e fundamentais. Depois é uma questão de opiniões. A política à direita apela a uma maior liberdade da população com, consequentemente, menos intervenção do estado no dia a dia da mesma; contudo uma maior liberdade conduz, inevitavelmente, a mais desigualdade social. Na esquerda há um maior apelo pela igualdade, mas, para haver tal igualdade, tem que haver intervenção do Estado e, consequentemente, restringir-se as liberdades da população.
Retomando à noite eleitoral, uma noite mediática e sensacionalista, com uma transformação dos meios de comunicação em estúdios de Reality Shows; com sondagens e gráficos com várias cores onde quem conseguir ter os efeitos especiais mais apelativos, tem mais audiência e ganha. É o momento apresentar de BigBrother na vida de qualquer jornalista. Eu, sendo sincero, nem tenho assim tanta aversão a Reality Shows, até que gosto de um bom drama, mas transformar a democracia de um pais num, já é mais problemático e isso não se refletiu apenas na passada noite de domingo, mas sim no último mês de janeiro. Esta natureza disruptiva do hipermediatismo, a superabundância e a mercantilização de dados, estatísticas e sondagens, vindos de todas as direções, restringe a aptidão cognitiva e o raciocínio do ser humano e consequentemente a tomada de decisões, com base não na razão, mas nas emoções, como o medo ou o receio.
Dado o papel decisivo das sondagens, dos gráficos vistosos e coloridos – a força política com mais representatividade nos meios de comunicação -, façamos jus a tal com um jogo de cores e partidos. Não podes vence-los, junta-te a eles, já diziam. Já relativamente aos partidos em disputa, houve, essencialmente, 4 vencedores e 6 derrotados.
Seguindo a ordem, falemos da cor de que se pintaram todos os distritos em Portugal. Cor de rosa, em parte acho bem para se combaterem as construções sociais de género, não fosse eu de esquerda, mas não são dessas que falamos. Esta cor foi a grande vencedora da noite, com a esmagadora e tão desejada maioria absoluta. A meu ver uma democracia perde sempre quando há uma maioria absoluta pois há menos diálogo e consensos, que são nada mais que as roldanas da democracia. É verdade que haviam dois partidos – chamemos-lhes, os laranjas e rosas – que, em termos de consistência e estrutura, ideologias à parte, se destacavam dos demais e os resultados falam por isso. Tendo eu uma queda pela política e filosofia socialista, fiquei parcialmente feliz com o desenlace da noite eleitoral, reconhecendo, contudo, a infeliz e crescente corrupção que se tem vindo a associar ao socialismo em Portugal. Também a verdade é que a corrupção, a par da tecnocracia, foi uma das grandes promessas falhadas da democracia liberal no geral e que, independentemente da força política vencedora, a mesma iria persistir, mais ou menos acentuada. Infelizmente é uma face oculta da democracia que, dificilmente, deixará de existir. Sem prejuízo, uma maioria absoluta não é algo positivo, nem à direita nem à esquerda.
Seguiram-se os laranjas, um dos 6 derrotados da noite. As políticas democratas sociais, a consistência, a firmeza e coerência são caraterísticas a admirar neste partido que o tornam, justamente, na segunda maior força política em Portugal e a maior força da oposição. Este é um dos maiores e mais importantes partidos do sistema, um dos mais influentes e mais bem estruturados e, apesar de não me identificar totalmente com a sua política, era importante e benéfico ter eleito mais deputados. Deputados estes que se cobriram de um azul escuro e que, infelizmente, migraram, com recurso a um discurso populista, para partidos mais radicais, desagregando assim uma direita que ganhava mais com o voto cor-de-laranja.
Quer se goste ou não – eu, pessoalmente, não gosto nada -, a verdade é que o azul escuro, e apesar do rosa ser a grande tendência, foi o grande vencedor da noite, com um crescimento exponencial e admirável desde as últimas eleições, transformando-o na terceira força política, passando de um para 12 deputados. Não me vou adiantar muito neste ponto, mas tenho pena que um discurso demagogo, histérico, racista e xenófobo, de apelo básico às emoções e sem qualquer substrato político tenha prevalecido e conquistado votos, tanto à esquerda como à direita democráticas. Mas é assim que funciona uma democracia, a liberdade é o que lhe dá origem, mas também é o que a pode colocar em risco. É uma ambivalência particular.
Não foi só de azul escuro, felizmente, que se pintou a direita. O gráfico azul claro foi também um dos vencedores da noite, com um crescimento meritório, reflexo, esta vitória, de um Portugal cansado dos escândalos que se têm proporcionado em volta do já referido socialismo, de jovens, ou pelo menos uma classe deles, com receio de um futuro precário. Não acho que o liberalismo seja a solução para Portugal ou para a precariedade, dada a natureza elitista da filosofia, a desregulamentação das grandes empresas ou a política económica num geral que, a meu ver, conduz a várias desigualdades, mas a verdade é que, de forma moderada, pode ser positivo. Mas sem perspetivas – e muito menos sondagens -, a ver vamos.
Mas não foram só vitórias, que o digam os partidos à esquerda do espetro político. A grande força vermelha foi uma das forças derrotadas, atingindo mínimos históricos. Manteve-se como a 5ª força política, apesar de parte do partido – uma versão mais “Verde”, digamos, – ter perdido a sua representação. A saída do parlamento de proeminentes deputados como João Oliveira e António Filipe reflete-se num abalo, a meu ver, da democraticidade do Estado Social de Direito. Não me identificando a 100% com o partido e reconhecendo a utopia surreal do sistema proposto pela filosofia comunista, o partido vermelho foi, e é, um partido essencial na manutenção da democracia portuguesa e no combate ao fascismo, com bastante proeminência no pós-25 de abril.
O roxo – ou vermelho também, dependendo do canal – foi o segundo maior derrotado da noite, especulando-se um gradual datar do mesmo, já refletido nas eleições presidenciais do ano passado. Sem prejuízo, reconheço a elasticidade eleitoral do partido que, como já assumido pelo mesmo, tem enfrentado, desde a sua génese, diferentes momentos de extensão e contenção, podendo este ser um desses. Contudo, a sua postura mudou e com isso as massas que mobiliza. O discurso foi-se crescentemente tornado mais violento e conflituoso, marcado pela mediatização e politização excessiva dos direitos humanos, uma importante bandeira içada, mas por vezes manchada por um populismo e sensacionalismo duvidoso. A postura de divergência e oposição, por vezes, demasiado vincada, nomeadamente no chumbo do Orçamento, conduziu também a uma descida de 19 para 5 deputados. Tal foi claramente lucrativo para o atual governo que mobilizou muito deste eleitorado e, também, para uma pequena esperança pintada de verde, uma esperança para uma esquerda da convergência e do diálogo que tem crescido e pode vir a abafar ainda mais o roxo, no parlamento. Apesar de tudo é uma perda uma diminuição tão abrupta de deputados no parlamento, como a de Beatriz Gomes Dias, dada a veia progressista do partido que tem contribuído para algumas mudanças positivas no sistema político e jurídico. Pode este contribuir um momento de reflexão para o mesmo.
O partido, chamemos-lhe, verde-turquesa – a cor deste também vai alternando – foi um dos derrotados, arriscando mesmo a sua representação e assento parlamentar, descendo de 4 para uma deputada, Inês de Sousa Real. É este um partido que, apesar de recente, é essencial no parlamento, não como uma grande força política do espetro dicotómico esquerda ou direita, mas sim como uma voz proeminente sobre as alterações climáticas e os problemas ambientais, ignorados ou não levados a sério pela política, mas vincadamente, e bem, assumido aqui como uma bandeira. Esta é uma força política que tem sido, erradamente, associado unicamente a causa animal, mas que tem um programa bem mais abrangente e, por vezes, ignorado. Será também este um momento para o próprio partido refletir sobre a forma como expõe a política e as suas causas, a fim de ter continuidade e utilidade política.
O verde, desta vez de esperança, foi uma das vitórias da noite – a meu ver, a melhor, mas eu sou tendencioso -. Trás, Rui Tavares, uma lufada de ar fresco sobre uma esquerda que se começava a radicalizar. Promete uma esquerda da convergência, em substituição da divergência e luta de egos que tem tido palco no parlamento. O objetivo da noite para o partido era um grupo parlamentar, mas a eleição de um deputado, após os conflitos internos do partido desde as últimas legislativas é sim uma vitória da esquerda verde, europeia e progressista; aberta ao diálogo, que reconhece a importância do debate entre todas as forças democráticas, não polarizando o diálogo nem reduzindo nem encostando, erroneamente, todo um esquadrão político à extrema-direita.
Por fim, temos o maior perdedor da noite eleitoral, um azul cristão borratado e abafado por variações mais escuras e claras que se começam a erguer. É com pesar para a democracia portuguesa que este azul perdeu o pouso parlamentar, assegurado desde o 25 de abril. Posso não me identificar, de todo, com a sua política mais conservadora, mas a democracia perde com a diminuição da pluralidade partidária, comportando o mesmo um partido marcante e de relevo para a democracia portuguesa desde o 25 de abril. Temos assistido a uma substituição gradual da vertente social, estimulada pelas políticas democratas cristãs que, quer se identifique ou não, trazem uma visão humanista para a democracia, por um discurso demagogo discriminatório de populismos radicais e autoritários.
Em suma, foi uma noite intensa, uma noite mediática, com muitos tons de verde, azul, vermelho, laranja e rosa à mistura; e isto não é necessariamente mau. É parte da beleza da democracia. Esta palete, como já vinquei, pode ser um impulso ou um retrocesso ao desenvolvimento em Portugal. O que sabemos é que se prometem quatro anos com uma conjetura política diferente e desafiante, uma mudança de paradigma que abarcam mudanças sistémicas no contexto político português. E o rosa, apesar da maioria absoluta, enfrentará novos desafios à sua governação, desde a recuperação económica, a crise sanitária, as fortes oposições e o crescente apelo sedutor do autoritarismo, já acentuado em outros países, dentro e fora da UE, como Anne Applebaum, retrata na sua obra “O Crepúsculo da Democracia”.
