OPINIÃO: Na sala de néon, o Humberto brilhou até um móvel permitir

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

– Atente no seguinte alerta. Não, não é isto. Atente no seguinte aviso. Talvez as nomenclaturas sejam manifestamente exageradas. Atente na seguinte mensagem. Sim, assim é que é. Mensagem é a palavra escolhida e a opção que bloqueio.

Está bloqueado.

– Senti, por breves instantes, a pressão, fruto do tique-taque do cronómetro virtual.

Parece tudo mais fácil visto de fora, não é?

– Completamente, estou de acordo. No sofá, a confiança é superior. Chegados aqui, abrimos as portas do desconhecimento e da infinitude do lapso. As mãos tremelicam, as pernas bamboleiam, o coração bombeia sangue e, em simultâneo, pondera deixar de o fazer. Como se a vontade, naquele momento, não respeitasse as condições impostas pela vida e, também, pela morte.

– O senhor é lixado. Pode não vencer o prémio final, mas já ganhou a distinção de homem com a desculpa mais profunda para o fracasso. Aliás, antes desta intervenção, tal categoria não gozava de existência. Agora já goza, porque a produção já concebeu a ideia e a garatujou na máquina de escrever.

– Oh, obrigado! Este reconhecimento significa algo para mim. Ainda não sei o quê, mas, mal tire férias para o descanso anual na Comporta, descobrirei. O grasnar da extensa amostra de aves e as instalações do Museu do Arroz arrefecem a turbulência que possa subsistir no meu estado de espírito. Então, vai avançar com o programa ou vamos ficar nesta troca de galhardetes?

Tem razão, tem razão. A resposta está incorrecta. Perdeu a oportunidade de levar para casa múltiplas coroas. Quer dizer, pelo que já ouvi dizer, alguns malandres, ávidos de consumo, nem chegaram a levar o dinheiro para casa. Malandros. Peço desculpa à plateia, mas o teleponto estava com uma gralha. Cá também temos estagiários. Fica para uma próxima, amigo Humberto!

O genérico apropriou-se da emissão. O apresentador e o convidado, já de pé, ainda se cumprimentavam e segredavam ao ouvido um do outro. Desapegaram-se por momentos, mas foi sol de pouca dura. Bem, sol não, porque o estúdio de gravação do programa possuía tecto e telhado. Ao fundo, clamorosamente, a sinalética é a de cessar a gravação. O pedido é deferido, sem contraposição.

Visivelmente extenuado, o apresentador acelerou rumo à cadeira customizada propositadamente para o camarim que detinha, dois pisos acima face ao chão que pisava. O lamento subiu de tom quando um membro do staff lhe cochichou a avaria que ocorrera nos elevadores, minutos antes. Objectivamente, a única solução estava no galgar do íngreme lanço de escadas. Não, não podia ser. Urgia outra resolução. “A feitiçaria só aparece em tendas nas festas da aldeia. Quando precisamos dela, está quieto”, exasperava o apresentador. “Eu não consigo subir tanta escada. Não consigo, não posso, não quero. E, modéstia à parte, não mereço. Apresento o programa vai para 19 anos e os elevadores nunca decepcionaram. Até quando precisei de fechar o espécimen de grade que antecedia a porta, no primeiro ascensorzinho que tivemos”, continuou, angustiado.

Num raio de sobriedade, silenciou o queixume e prontificou-se a subir os degraus, rumo ao farol do sossego pré-habitação. À medida que a planta do pé abandonava cada degrau, o apresentador conjecturava versos. Inicialmente, estes soltavam-se com relativo desembaraço das amarras da forma poética; contudo, a sucessão voraz das frases encaminhava a auto-reflexão para a avenida da elegia. Os lamentos irrompiam pela escadaria, reverberando no semblante e na sagacidade do convidado que o seguia, sem o primeiro dar fé.

O pequeno cubículo, cuidadosamente decorado e adornado com os mimos exigidos pelo rosto do concurso, reluzia. O néon funciona e ainda bem. Que chatice seria comprar material com tal característica em vão. Após cruzar a entrada no camarim, o apresentador indicou para o tecto com as duas mãos e ensaiou um sinal da cruz supersónico, – indecifrável ao mais comum dos cristãos – fechou os olhos e dirigiu-se ao paraíso almofadado. Um analítico com tarimba notava, sem esforço, a agonia do objecto por voltar a privar com as nádegas de um caquético durante algumas horas, amparando todo o tipo de secreções e gases sulfurosos.

As brasas aqueceram pouco porque o urro do Humberto, que completara a subida segundos antes, acordou o apresentador:

– Desculpe incomodá-lo! Gostava de partilhar consigo um talento escondido. Dá-me licença?

– Faça favor, faça favor! – autorizou o apresentador, encostando a palma da mão ao semblante e exprimindo nojo em estado bruto.

Humberto começou a estalar todas as articulações oferecidas pelos progenitores de todas as formas ao alcance da imaginação. Seguiu-se puro contorcionismo de alguns membros e exposição de omoplatas, nistagmos repetidos, movimentações autónomas dos peitos após contracções, o entrelaçar dos dedos das mãos e dos pés e a realização da uma espécie de flor em ponto minúsculo com a língua.

Inexplicavelmente, tais comportamentos despertaram a atenção do apresentador. “Estou a ficar para trás. Comparativamente ao talento deste fulano, eu sou apenas um indivíduo que apresenta um concurso televisivo”, pensou com os seus botões. O número repetia-se e a perfeição acentuava-se. A atrapalhação era visível na face do apresentador. “O que poderei eu fazer para cessar esta demonstração de superioridade? Ou acontece algo por magia/bruxaria, ou então é a morte do meu programa e da minha carreira! Vejam, até já estou a utilizar orações coordenadas disjuntivas!”, continuou, num lamento.

Sem nada que o fizesse prever, Humberto embate com o mindinho na esquina de um móvel. A confiança foi assolapada pela dor, a segurança foi suplantada pelo sofrimento. A feitiçaria estava mesmo ali. Ou a magia. Ou o karma. Ou qualquer outro conceito etéreo.

“Felizmente, o Humberto magoou o mindinho! Já não sabia o que fazer para deter tanto carisma. Além disso, fiquei indeciso entre pedir uma medição de força através do braço-de-ferro ou em confidenciar-lhe que sou das poucas pessoas em Portugal que não possui uma perna mais curta do que a outra”, reflectiu, aliviado.

Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

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