Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
“O (ple)biscito paira nas minhas margens. Cerca-me, afunilando a possibilidade de escapatória. Na margem esquerda, (ple)biscito zumbe continuada e estridentemente. Na margem direita, plebiscito iça as garras que pespontam nas mãos imundas. (Ple)biscito aproxima-se, replicando os passos de (ple)biscito. A coreografia fora reproduzida mecanicamente, sem enganos nem desvios. Todos sabemos o quão desconfortável é assistir a um espectáculo de dança desarranjado ao nível do movimento corporal, desconectado e desfasado dos restantes elementos do grupo. Aliás, se estivermos na presença de apenas um artista, enfatizamos prontamente o jeito/talento do espasmódico, ao vislumbrar a proximidade entre partes do corpo que julgamos de costas voltadas”.
O leitor questiona-se (justamente!) acerca da sanidade de Tomé, o autor deste excerto. Não julgo, fiz o mesmo. Faça-o, perca esse tempo. O investimento será proveitoso, tenho a certeza. Mas, mesmo que não sirva de muito, pode haver uma razão bastante convincente para submeter o pensamento “o gajo é maluco!? Não percebi nada do que ele acabou de escrever. Mas há uma explicação para isto? Só se, após finalizar este excerto, o autor digladiasse com a trombose que o vitimou” à apreciação dos seus botões. Desconheço a estatística associada à quantidade de escritores atacados por acidentes cardiovasculares no exercício das suas funções, mas submeterei um requerimento ao Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre o tema. No leito da filosofia, a metafísica e a estética iriam dar umas cambalhotas, trocando carícias e achismos sobre a beleza e os acontecimentos que desencadearam tal acção.
Tomé, um colega de antanho, comia sílabas indiscriminadamente, mas não praticava genocídio ao nível do termo. Num diálogo, sem aviso prévio, qualquer vocábulo estaria refém da sua apetência canibalesca e, no terreno que as circunscrevia, as palavras que retesassem o pescoço em demasia praticavam êxodo precoce, apanhando a boleia da sua bocarra. Relatos de primos em terceiro grau e de conhecidos orientam a postura sanguinária de Tomé para as primeiras leituras que fez sem o auxílio da bola anti-stress e para o visionamento do filme Silêncio dos Inocentes, enquanto cortava as unhas com o auxílio de um x-acto. Familiares e amigos preservam indecorosas memórias – englobando as práticas descritas anteriormente e outras que não me atrevo a expor – e, como tal, cumpriam o protocolo de não insurreição ante pessoas que moderadamente gramamos.
Tomé, o maior dos alarves vocabulares, repetia o discurso que verti vezes sem conta, a propósito do mais pequeno incidente. Um dia, informou-me da sua visita ao Jardim Zoológico (embora sem mencionar a entidade que o recebeu) e do quão agradado saiu da secção dos insectos, dos répteis e das aves. Eu sou mais de mamíferos, tal como a rede social analógica que me apanha a espinha. Questionei-o sobre os leões, hipopótamos, girafas, tigres, chitas, rinocerontes e espécies tantas. A massa gris de Tomé, cercada pelo fascínio recente, engatou a segunda mudança na descrição dos compartimentos preferidos. Volvendo aos seres repugnantes, o mecanismo contemplativo de meu colega cintila: carapaças, patas frágeis, respirações por traqueias, exoesqueletos quitinosos. Só me lembrava de Franza Kafka e de Frederik Sjöberg. Tomé repeliu-me com a conversa sobre insectos, apesar da razoável oratória e da imensurável paixão que incrustara ao tema.
Tomé, a ventosa que aspirava a amigo, patenteava outro selo, aliado à ingestão silábica: a transformação das palavras compostas por “sc” em “ch”. Por vezes, acumula, quando a mão ordena as letras. Antes da estranheza se propagar ao estilo inconfundível da gangrena, resta esclarecer que a transformação ocorre somente de “sc” para “ch”. Em certas alturas, chegou a afirmar convictamente que não há registos de seres humanos que (de)crecheram; quando se encontra saciado, defende que o crechimento das crianças, até aos seis anos, tem a creche por dever. Na faculdade – período no qual as nossas íris acasalaram -, no decurso das apresentações e da tramitação habitual condizente com as normas sociais, Tomé esforçou-se para discorrer sobre a dupla condição que o atormentava, mas a fala pusilânime e enfezada foi rapidamente substituída pelo resumo biográfico vizinho.
Ontem, após ler – nas palavras de Otonde Odera, seu cozinheiro – que Idi Amin foi atacado por um temerário hipopótamo durante uma tarde de pesca, lembrei-me de Tomé. Prontamente, larguei o manual culinário ditatorial servido como digestivo, no pós-almoço, para a almofada desprovida de nádegas e revisitei as palavras do colega que nunca deixou de o ser. Aspirei as palavras num sopro e enfureci, constatando a ausência de formulação de lógica. Enunciei o excerto, enganando-me uma ou duas vezes, mas a poeira adensava e velava a luz que, infantilmente, surgia nos programas rascas sempre que o homo sapiens era arrebatado pela candura. Desencantado, deu-me a veneta para verbalizar em brados a mensagem insuflada de enigma. A defesa desta faixa textual, em concerto, era facilmente impugnada pelas bandas de metal mais barulhentas, juntamente com a exigência do reembolso. Se a declamação for um desporto e eu submeter o texto a concurso, creio que a desclassificação é pura miragem.
De súbito, fui mordido por algo que bate asas. Esbracejei, esperneei, as movimentações nos quadris mais do que quintuplicaram. Fixei a mira para o traste voador e esgrimi tentativas para o deter. Encostei-lhe as falangetas duas ou três vezes, até o bichito ter abandonado a habitação onde exasperara o inquilino.
Do outro lado da rua, uma esbelta rapariga apreciara a performance de dança. A prova está no meu telemóvel e surge despida, acompanhada de um “que fazes depois de jantar?”.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação