Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Aos que bradam e empossam, a plenos pulmões, janeiro como o mais arguto dos meses no que ao reinício diz respeito, abro mão de um conselho: saiam à rua, descerrem as pálpebras, esfreguem-nas e esbugalhem as retinas. Aí, entenderão uma série de coisas. Janeiro seria a altura do recomeço se e só se (1) setembro não estivesse inserido na equação; (2) todos os seres humanos celebrassem o aniversário nesse período ou (3) Jesus ressuscitasse nos primeiros 30 dias do ano. Ora, até ao momento, nenhuma destas três hipóteses se verifica, apesar de, em anos bissextos, o filho de Deus teimar em antecipar a ressurreição para março. Quando Cristo decidir a adiá-la para Setembro, a rescisão da equipa dos meses que encetam com janeiro tornar-se-á inevitável.
Aliás, vou perseguir o exagero. A palavra “setembro” devia conhecer uma nova acepção nos dicionários de língua portuguesa: um prazo indefinido inexistente, indecifrável, calendas gregas. Apesar de temer, em parte, os perigos de uma internacionalização precoce, arrojo a ideia de o termo figurar em dicionários de outros idiomas. Imagine-se! Na última página, em letras garrafais, a negrito. Os cidadãos que ainda se regem pela prática da busca dicionarizada – excepto portugueses – iriam anexá-la ao portfólio vocabular e aplicá-la desleixadamente, ao desbarato, até enxergarem do que se trata. Imagine-se! Um chinês proprietário de um restaurante a desculpar-se ao cliente com a frase “京酱肉丝仅在 setembro”. O Jing Jiang Rou Si asfixiaria as gargantas dos restantes, tal seria o espanto.
Independentemente do grau de perrice da vida, façam caso do alerta que vos lanço: algures, enquanto Leviatã se coça, uma tia grudar-se-á à família mais próxima (a vossa) a fim de aproveitar a quinzena destinada ao descanso:
– “Paterna ou materna?”- perguntam os leitores, corroídos pela curiosidade.
Ainda bem que captei a vossa atenção e, aproveitando para saciar o interesse, respondo:
“É indiferente. Alguma aparecerá!”.
– “Mas, tipo, ela meio que se infiltrou na marcação das férias da tua família? Ninguém accionou a alavanca metafórica na intromissão? O teu pai / A tua mãe não foi capaz de refrear o ímpeto da tua tia? Ai, se fosse com os meus, tudo seria diferente! Havia de ser bonito…” – reclama, indignado, o do lado de lá.
Leitor/a, não cante de galo. Para começar, não comece uma frase com “mas, tipo”. Dá a sensação de possuir uma fixação pelo mastigar de algo, embora não saiba conjugar o verbo no presento do indicativo. Se trabalha para a obsessão, certifique-se de pronunciá-la sem gralhas. A incredulidade é deveras compreensível face ao relato anterior. Há precisamente um ano, localizava-me do mesmo lado da barricada, a profanar, a cometer a heresia de atentar contra a sapiência da invectiva. Lamento desiludi-lo/a.
A represália aturdiu o/a leitor/a e devolveu-o à incompreensão. A névoa adensou-se e assentou. As palavras seguintes foram envenenadas com suspeição.
– “Estás a exagerar. Aposto que não foi assim tão mau. É só uma tia e tu falas do acontecimento como se um elefante te tivesse saltado para o colo enquanto fazias um safari de Arusha até à cratera de Ngorongoro”.
Por acaso, já fiz esse safari. Custou-me 1700€. Foi fantástico, a natureza é um máximo. Fiz aquilo em agosto, há seis anos. Nunca mais me esqueço. No dia anterior, tinha comprado o Yves Saint Laurent Mon Paris e estreei-o lá. Custou-me 93€, com desconto. Tenho mais de 100 perfumes em casa, junto ao meu closet. De alguns deles, nem suporto o cheiro. Mas é um vício. Os meus vícios são perfumes e vestidos. Agora, compro às paletes deles na Shein. Ainda na semana transacta encomendei nove por 170€. Que dizes? Foram baratos, certo?
– Por que razão te focaste noutros temas? Nós estávamos a falar das férias com a tua tia e eu continuo afim de compreender o porquê do suposto martírio! – a ira do/a leitor/a galgou alguns obstáculos e estava a poucos metros de alcançar a meta.
E foi, e foi. Na altura do safari, fiz frente a um tigre. Não chegámos a vias de facto porque um casal na casa dos 80 nos afastou. Parecia aquele desporto de luta. Ele ainda me cravou os dentes num braço. Levei 17 pontos e comi três gelatinas, no decorrer da operação. Paguei 1452369.54 xelins tzs (cerca de 500€). Os médicos foram uns queridos porque as incluíram no preço. O teu tio filmou a sarrafusca com uma câmara com mais de 15 anos. Dei-lhe num aniversário. Uma Cannon, sabes? Na altura, custou-me 300€. Ainda está intacta.
O silêncio vestiu o casaco, ficou confortavelmente mudo e não esgrimiu mais tentativas de assimilação. A confidência tinha a canalização entupida.
Fiquei assim quando o meu filho me disse que tinha sete cadeiras por fazer. Sem palavras. Desde que foi para Valença, só me gastou dinheiro. Só para a casa, desembolso 350€ e ainda lhe dou 80€ por semana para as despesas dele. E ele ainda leva comida de casa. Agora, na Eslovénia, em Erasmus, fez quase todas, só lhe ficou a faltar uma ou duas. Diz que lá é mais fácil. Mas a brincadeira ainda me custou 3500€, em seis meses. Começou a trabalhar há coisa de dois meses e já tem uma trotinete elétrica. Lá foram mais 400 e tal euros. A consumição que ele me causa é indizível.
– Romão, mas tu nem filhos tens! Estás parvo? Será que estás perante um princípio de AVC? A boca parece alinhada com a face. Tens o braço dormente? Sentes-te fraco? Responde, responde! Olha… pateou. Vou chamar a ambulância! – berrou o/a leitor/a, em busca de sentido para as palavras que ainda reverberavam na sua cabeça.
Acordei no hospital e constatei que os meus vasos sanguíneos tinham arranjado uma nova companhia. Inferi, dos olhares emanados, que era um caso de apenas uma noite. Não liguei. Ainda atordoado, na minha direcção, denoto o galopar do médico. Sobre o meu ombro, de repente, pousou a mão hirsuta do doutor:
– Não se rale, Romão. A doença de Aurora manifestou-se, mas, não tarda, desaparece. Vou medicá-lo e, daqui a um mês, está como novo. Tem as defesas em dia e é uma pessoa com saúde de ferro. Foi a sua sorte.
Esbocei o sorriso mais tímido de que tenho memória. O susto tinha passado, mas não quis deixar o médico sem resposta. Relanceei o olhar pela minha epiderme e, num suspiro, desabafei:
– Calha, provavelmente, na altura em que o bronzeado se despede de mim. Setembro é assim: época de despedidas e recomeços.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação