Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Faz tempo que não oiço um disco na aparelhagem que recebi no Natal transacto. Vai na volta e perco o hábito de, nas manhãs ou tardes livres futuras, afinar o azimute da compenetração para direcções paralelas. No exíguo cosmos onde cerro as pestanas, os sons cuspidos pelo riscar da frágil agulha salvaguardam o espaço. O corpo de segurança privada responsável pela guarida do aposento está eximido das responsabilidades de serviço referentes ao período supramencionado e soube-o logo que foi requisitado. O desafogo trouxe-me, em algumas circunstâncias, tormentas variadas. Perdi o rasto ao número de contumélias que escutei e não entram para este rosário os vitupérios proferidos entre dentes ou à traição, sem hipótese de defesa de honra. Chamaram-me “novo-rico” e abateu-se sobre mim uma catástrofe emocional, à escala do tsunami que arrasou a costa leste de Honshu, ilha do Japão, em 2011. Comigo, é assim. Pão, pão, queijo, queijo. Tudo na cara, tudo às claras, sem encandear.
É verdade que a expressão “pão, pão, queijo, queijo” possa conceber parte de um excerto de uma lista de supermercado destinada à confecção de uma receita que entrou para o passeio das tendências: a repetição das palavras “pão” e “queijo” suscita, por um lado, a intenção de assinalar a importância dos ingredientes e, por outro, de evidenciar a postura claudicante do autor na anotação das mesmas. Ah-ah-ah. Este é o meu riso de desdém e de puro desamor. A sociedade portuguesa padece de inúmeras maleitas e o leitor deste texto exemplifica, na medida certa, uma delas: por que razão a sageza o lançou na cilada de pensar que o autor da lista poder agregar autismo, ainda que num espectro reduzido? No geral, a vítima de um logro, à vista desarmada, faz beicinho e atiça a comiseração de outrem. No particular, os mártires do Halloween que resistem à oferenda diabética merecem o mais sincero e caloroso abraço.
“O Halloween é um disparate em todo o seu esplendor”. Toda a gente que ouviu esta frase está, certamente, a ponderar instaurar uma queixa-crime ao propulsor que a bombeou. A seguinte tese é escoltada por alguns dos seguintes argumentos. (1) “Durante o ano civil, muitas entidades e associações agastam-se com o número de crianças obesas que povoam o mundo e, neste dia, a pretexto de (mais) uma americanizaçãozinha, acende-se a luz verde rumo à avalanche de açúcar. Coerência: procura-se. Falta só a impressão e a colocação do aviso em todas as esquinas”; (2) “As múltiplas combinações ao nível da indumentária são conhecidas e replicadas, mas remanesce o problema do recipiente no qual se depositam as guloseimas de variegada estirpe. A criança que detenham todo e qualquer tipo de objecto que se pilde ao tradicional balde enformado de abóbora é discriminada (ainda que com a máxima perícia e discrição). Este escândalo não abre noticiários, mas é um flagelo. Quais as vozes que se irão erguer perante tamanha injustiça?”; (3) Convido eventuais interessados para a caça ao significado vocabular, com início na palavra “travessura”. De dicionário em riste e com o dedinho vocacionado para o acompanhamento textual, repetimos o(s) sinónimo(s) correspondente(s): 1. ato de pessoa travessa; 2. maldade de criança; diabrura. Ora, segundo os manuais da Porto Editora e o website da Infopédia, “pintalgar de ovos a casa dos vizinhos”, “envolver papel higiénico em substância viscosa e projectar contra a fachada”, “cobrir de graffitis o muro de habitações com turpilóquios inovadores” e “assustar os transeuntes com a face decalcada do Michael Myers” ausentam-se da lista de entradas para o termo “travessura”. Se e/ou quando ouvirem tais infâmias, denunciem. Portugal tem de entrar na ordem.
O vocábulo “quando” assume, em certos cenários, a forma de conjunção. [Inserção de uma conjunção coordenada adversativa distinta de “contudo” ou “porém”], há alguns aspectos a submeter a apreciação. Oiço, por vezes, pessoas a afirmar “quando eu tiver um filho/a, não o vou baptizar nem inscrever na catequese” e “quando eu tiver um filho/a, desinstalo as redes sociais e arrumo a parafernália de tripés e focos de luz que comprei ao meu primo da Guarda, em segunda mão” *. Qual a justificação para a exclusão imediata e, consequentemente, imponderada de um contexto de possível impotência ou infertilidade? A temporalidade sobrepõe-se à condição, embora a conjunção possa desaguar nas duas vertentes. [advérbio de interrogação]? Com o límpido fito de evitar barafundas ao nível da forma, substituamos o estouvado “quando” pelo criterioso “se”. Lacrado o compromisso, o risco de espalharem a notícia pelo grupo de amigos mais próximo das vítimas é reduzido em 100%. Evitam-se chatices como a de explicar o porquê de saberem primeiro sendo que mantêm pouca proximidade com o/a visado e a de trocar aquilo por miúdos, na companhia de línguas de perguntador com quatro ou cinco anos de estágio.
Se der liberdade à pena para grafar sobre estágios, nem amanhã saio daqui. E não vou passar o exagero. Na verdade, apouco-me da realidade. Só devo colocar a mão enxuta lá para domingo ou segunda. Defendo, intransigentemente, a criação única e exclusiva de um sindicato só para estagiários. As grandes transformações começam com pequenas mudanças. Os jardineiros são versados em pequenas mudanças e, no meu entender, pouco valorizados face à agreste missão de cuidar de um jardim, independentemente da extensão da relva. Há muita erva daninha alastrar. A interpretação é o que quiserem dar / Não tenho jeito para regatear/ Também não sei se eu a quero aumentar / Porque eu não sei. Estou como Variações. Entendam como quiserem. Deixo no éter. Porque eu não sei se me quero polir / Também não sei se me quero limar / Também não sei se quero fugir / Deste animal, deste animal.
* A conversa amena sobre o tópico efectiva-se semanalmente, às quintas-feiras, entre as 18h e as 20h, no sótão de um edifício que contém uma mercearia, um talho, uma agência de viagens e uma agência funerária. Sim, todos rimos muito com a ironia da duplicidade do sentido da viagem. A vida tem destas coisas.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação