“The Handmaid’s Tale” não é nenhuma novidade para quem aprecia uma boa série. É uma imersão em todo um universo de sensações que só podemos sentir através do bom cinema – a fotografia e a imagem são vibrantes, a história cresce e arrepia-nos de episódio para episódio numa odisseia consciente e coerente, com personagens densas e complexas.
A ideia original dá créditos a Margaret Atwood, que redigiu a obra que inspirou a série. Na mesma, temos uma realidade paralela pós-guerra onde a democracia norte-americana sucumbe nas amarras do fanatismo religioso, conduzindo a uma resseção sem precedentes de direitos e liberdades – principalmente das mulheres e da comunidade LGBT. Vemos, na série, como, de um bem estruturado e planeado golpe de estado entronca um rápido recuo histórico e civilizacional, disfarçado pelo bom (e hipócrita) marketing doutrinal. A gradual destruição dos pilares da democracia, a suspensão da constituição, a queima dos livros e tudo o que é cultura, a eliminação dos cargos de ensino, dos professores e académicos – tudo foi metodicamente preparado para não haver questionamento nem contraditório ao regime.
A história desenvolve-se em volta de June Osborne – que perde o seu nome, pois passa a ser propriedade da família a que foi adereçada. June, como outras mulheres, é uma “serva” deste novo regime totalitário, admoestada e amestrada com práticas humilhantes e degradantes de tortura, para ser uma incubadora da família que serve. O cargo e a função que a mesma desempenha surge após uma grande diminuição das taxas de natalidade, um pouco em todo o mundo, encarada, pelos líderes deste novo regime imposto, como um castigo divino pelas más práticas e costumes pecaminosos das instituições da sociedade que os precedera. Poucas mulheres são férteis e por isso, as que são, são capturadas, presas e treinadas para depois, à força, integrar estas famílias poderosas e engravidar, no lugar da “Senhora” da família. A prática encontra o seu suposto fundamento numa escritura bíblica, interpretada hipocritamente pelos líderes e “Comandantes” que tomaram o poder nos Estados Unidos.
Apesar do constante tom cinza, poeirento e pouco iluminado que transmite um inevitável sentimento de tragédia, vão-se demarcando certos pontos onde a coragem destas mulheres dá um fio de esperança de revolução, dando ânimo à série.
A visualização desta série é hoje bastante importante. É um marco televisivo para quem se preocupa com as crescentes recessões de direitos humanos (aparentemente inofensivas) que vemos em muitos Estados ditos democráticos e liberais. O mais assustador é parecer que, por vezes, aquela realidade paralela não está assim tão distante; ou então sabermos que muita gente se identificaria com um regime totalitário desta natureza. É olharmos para países como o Afeganistão (com as claras e devidas adaptações culturais) e vermos como, em 2020, do dia para a noite, as mulheres sofreram uma recessão de direitos humanos de mais de 20 anos de luta e vermos que isto não é ficção. É vermos como as instituições normalizam práticas horríveis, tornando-as normais.
“The Handmaid’s Tale” é simultaneamente um hino à força do coletivo e de que não devemos desistir. É coragem. É amor.
Estrelas: 10 em 10