Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Para um procrastinador que aspira a escrever coisas tecladas em documentos, encetar um texto integra a panóplia das tarefas mais morosas nas posições mais cimeiras. Da parca lista de qualidades que, ora bem, me qualificam, destaco, evidentemente a observação. Eu fito procrastinadores desta categoria à distância e tiro-lhes as teimas num ápice, garatujando as manias e os maus costumes no bloco que me acompanha. Na última década, segundo números divulgados pelo instituto que cuida destes afazeres, a actividade de fitar procrastinadores que teclam relaciona-se intimamente com o estilo de corte dos fios delgados ao nível do buço e restante face. Da extensa lista de defeitos, faz parte o escrever segundos períodos deficitários e justificá-los com o pleonasmo.
Os visados sentados defronte de um ecrã revolvem tudo o que se encontra disperso pela mesa: os dois volumes do Moderno Dicionário da Língua Portuguesa distribuído pela Círculo de Leitores, cadernos de apontamentos com letra a tender para o ilegível – percepção inferida do içar do caderno e do esbugalhar de olhos do escritor -, dois smartphones, alternadamente, impedindo que os visores privem 30 segundos com o merecido breu, uma sandes que pode conter compota de frutos vermelhos ou sucedâneo de caviar e uma bola fabricada em poliuretano para aliviar a ansiedade e o stress. Alguns até erguem o telemóvel e o rodam em diferentes sentidos, a velocidade lenta, mais do que uma vez, contrariamente aos brutos que perdiam rede e esgaçavam a antena, nos primórdios.
Atenção! No parágrafo anterior, cingi a enumeração ao material menos passível de abalroar a susceptibilidade do leito pelo facto de apalpar a predisposição e a vontade de acolher relatos mais irascíveis. Existe algo que aproxima todos os indivíduos – espalhados pelas áreas mais distintas – que enfrentam uma pequena plateia composta por três ou quatro reformados que se apoiam nas bengalas e se sentam em bancos de jardim das que enchem salas de espectáculos e pavilhões: desconhecer, em certas circunstâncias, os “quereres” da plateia e o grau de pachorra que resta para o choque, para o talhar da monotonia. O fita-procrastinador (este neologismo ninguém mo tira) diverge, superiormente, dos grupos supracitados. Realizado o introito e apalpada a pachorra do meu público – ao lerem “pach” sentiram ansiedade, confessem lá – vou confiar no instinto de não descrever situações insólitas.
Na cabeça do leitor paira, por certo, a questão que relaciona o estilo de corte dos fios delgados do buço e resto de semblante com o facto de alguém na maioridade enveredar pelo exercício da profissão de fita-procrastinador. É uma pergunta inteligente, sem dúvida. Aos poucos, os segredos de uma profissão in crescita têm sido desvendados por personalidades ligadas à fita-procrastinação e a fundadores do métier, a fim de elucidar o comum escritor quanto à razão de ser da intensidade do mirar alheio e, por sua vez, da ausência de uma perturbação do foro mental. Acompanho, atentamente, cada desenvolvimento sobre o tema. Hoje, face ao cargo que ocupo na empresa e ao prestígio que tenho acumulado de Norte a Sul do país, serei responsável por desvelo de um dos últimos: os fita-procrastinadores usam apenas bigode e barba de dois/três dias no que resta do semblante, com pêlo a eriçar e a picar a mão aquando das suas incontáveis travessias.
Nenhum ofício é perfeito. Uns abarcam mais vantagens, outros abarcam mais desvantagens, outros equilibram-se e induzem-nos à dormência. A meu ver, este encerra duas problemáticas de hercúlea resolução. As conversas e reuniões constantes com a actual direção revelam o seu quê de infrutífero assim que confronto os membros da Comissão Executiva sobre a duração do período laboral e das políticas de inclusão e diversidade que a Companhia faz por não assentar como matriz para o crescimento no setor empresarial. A dissidência foi manifestada em sede própria, sem reticência. Aguardo as respectivas sanções disciplinares. Se a gravidade se agigantar, recorro ao advogado de Ricardo Salgado e às instâncias judiciais.
Reparem: à excepção da profissão de fita-procrastinadores, conhecem alguma que discrimine – na totalidade – as mulheres pela inexistência de bigodes farfalhudos e de barba naquelas condições que especifiquei e aceite homens somente durante dois ou três dias? A resposta é “não”. Trabalhar dois ou três dias por semana corresponde, no fundo, a um part-time e, no limite, a um trabalho de freelancer. Até ao destapar do véu da capilaridade, o género masculino estava encarcerado na apresentação facial que ditou a tendência da década de 70 e de parte da década de 80 do século XX, comportamento que dificultava a esquematização e a recolha e análise de dados relativos ao procrastinador. O código de conduta estava restrito aos grupos que rivalizaram durante anos e a tramitação era rigorosamente cumprida. Os procrastinadores que teclam em documentos só admitem a abordagem a quem os fita e distinguem, com destreza e perícia, os últimos dos que os observam e galam. A ordem anterior varia consoante o número de dias que passam sem que a gilete contacte com a pele.
Em junho transacto, ocorreu o impensável e descurei aquele que era metade do meu ganha-pão. Momentos antes de entrar ao serviço, o detector de pêlo facial intimou o meu semblante e acionou o alarme, acusando a barba de povoar a cara há mais de 5 dias. Para leigos, eu explico: naquele dia, nem como um mero gala-procrastinadores fui identificado. Passei uma das maiores vergonhas da minha vida porque os novatos adoram ver os mais felpudos a cair e a ficar com “cara de rabo de bebé”. Escusado será dizer que fui vítima de ‘memeficação’ (outro que ninguém me tira). O relatório declarou, e cito, “falta de zelo e cuidado”, “uso ilegal de substâncias que elevam o desempenho e a performance diante de um procrastinador” e “desrespeito pelos princípios da organização”. Faltavam-me apenas dois semestres para obter o grau de contempla-procrastinadores e aventurar-me por outras geografias. Sempre dei tudo e, à mínima distração, sou empurrado.
Entretanto, mete-se novembro e torno-me guedelhas. Desisti de andar todo tosquiado. Pelo menos, a situação desagradável trouxe algo que me satisfez: quatro meses volvidos e ainda não conseguiram ocupar a vaga que deixei. Privilegia-se o Ensino Superior e depois dá nisto. Se em fevereiro ainda não tiverem preenchido o lugar, disfarçam o Marco Paulo e convencem-no a assinar. É uma questão de cobrir-lhe a pele. Com pêlo.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.