Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
“A dissensão ao nível vocabular é sublime, sobretudo quando comparada com o acto de estourar um foguete, um petardo ou demais variâncias de material pirotécnico”. De facto, as pessoas são hábeis no que concerne ao espicaçar. Há cerca de 2880 minutos, ouvi a frase com que enceto a presente edição. Antes de prosseguir, apelo à salvaguarda da simulação do vómito porque, se o gizarem neste momento, perdem uma reacção adequada e firme ao que sucederá. O túnel de migalhas e saliva, formado no decurso da trituração alimentar de um pão com iscas e cebola, dividiu os olhares esgazeados com a tirada que – fruto do desconhecimento pessoal face à entidade que a proferiu – parecia pregada a um tom irónico.
Até àquele instante, a refeição que almoçava alimentou a minha disposição porque a comida me saciava. Desengane-se quem tenta atribuir tal conjugação à comida gourmet ou ao empratamento que, por vezes, desafia os padrões estéticos. A audição é a eterna inimiga do paladar. Mal escutei a frase, cessei o movimento das pratas. Traguei o vinho branco que bebericava, fi-lo andar na roda-gigante da minha cavidade bucal e trouxe o guardanapo para a retina do público. A todo o custo, eximia-me àquilo que ouvira. Levei outra garfada à boca, mastiguei incontáveis vezes e não fui capaz de empurrar para o estômago. Cuspi para o prato? Não, claro que não. Então, e a etiqueta? Os guardanapos de papel, inseridos num pequeno cesto, serviram de guarda-redes ao mastigado.
O abalo adquiriu uma dimensão catastrófica e a desorientação tomou as rédeas. Levei aos lábios o vinho branco, mas mantive a mandíbula cerrada. Levei aos lábios a água e o comportamento fidelizou-se ao anterior. Levei aos lábios o guardanapo a fim de limpar a solução bíblica que pingava ao ritmo do chuveiro que escoa as últimas gotas depois de desligado. Já agora, respondam-me à dúvida: desliga-se um chuveiro e fecha-se a água ou fecha-se um chuveiro e desliga-se a água? O esclarecimento quanto a esta problemática seria do interesse nacional. Sim, todos sabemos que qualquer pessoa compreende a mensagem, independentemente das palavras utilizadas. Contudo, o “dói-me a cabeça” também provém dos anais do senso comum e o ser humano prefere ser esclarecido com rigor.
Ajeitei a posição dos copos, coloquei os talheres sobre o prato. Percorri a ementa novamente para seleccionar qual a doce perdição que me faria olvidar toda aquela chatice. Ananás? Não, a acidez faz-me mal. Baba de camelo? Não me atreveria, confesso. O preconceito impede-me. Quer dizer, “babar de camelo” não concentra a mais ínfima parte do animal? Tangas! Pudim? Nem toda a gente o faz com carinho e amor, os ingredientes essenciais para confecções culinárias. Bolo de bolacha? Uma ocasião apanhei uma da estirpe Maria quase intacta e alérgica à cozedura. A partir daí, expulsei-as da minha habitação. Nem renda pagavam, estavam à espera de quê? Melão? Depende. Tudo o que fuja à fatia do fruto a fazer lembrar uma pequena embarcação, com os cortes aplicados a simular as tábuas de madeira, é pouco digno de ser servido. Propunha aos arquitectos da cozinha melão tornado noutros meios de transporte conhecidos, exceptuando um tipo de carro elétrico.
Do alto da minha ponderação, escutei novamente a frase. Desta feita, o autor daquele juízo valorativo devorava um pavê de chocolate com crocante de nozes numa taça de considerável fundura. Esta sobremesa, quando mastigada somente por seis ou sete resistentes dentários, demora a ser processada. O espectáculo ao qual assisti causou repugnância porque o indivíduo fabricou uma papa de cor indizível, espécie de miscelânea entre amarelo-torrado, castanho e um fio delgado de óleo de reparação automóvel. Irritado, depositei com estrondo a ementa na mesa e bradei pelo empregado de mesa, macho que acedeu à exclamação tonitruante, devolvendo um olhar fulminante e, em simultâneo, de profunda desaprovação:
– A que se deve tamanho fel, senhor? – inquiriu.
Nem respondi. Pontapeei o saber-estar e as boas maneiras. Enfurecido, dirigi-me ao enunciador da frase maldita. Cutuquei-lhe a omoplata com o indicador e, na espera da volta do seu corpo, acendi uma tocha com fumo vermelho por forma a assinalar a discordância. Atirei-a para o canto desprovido de matéria humana e observei-lhe os primeiros segundos rumo à extinção. Não sou um animal, principalmente porque na imediação transitava uma mulher na casa dos 50 com a bombinha de asma em riste e com uma perna em falta. Quem me conhece, sabe da estima que tenho pela proporção no que à acção compete. A senhora deixou trespassar, por entre outras ânsias, o agradecimento, espalmado naquele olhar marrom. Ainda dizem que a sedução já lá vai…
Perante a nuvem de fumo que se erigia, e findo o mascar, o agitador bebeu de um só trago o digestivo que lhe fora servido segundos antes e, com jocosidade no semblante, atirou:
– A dissensão ao nível vocabular é sublime, sobretudo quando comparada com o acto de estourar um foguete, um petardo ou demais variâncias de material pirotécnico. Permita-me que lhe diga que discordo, em absoluto, do comportamento que acabou de manifestar. As regras estão discriminadas na porta, mas não ficam lá. É obrigatório cumpri-las dentro deste ou de qualquer outro estabelecimento. Aqui, neste restaurante, não é permitido o queimar de tochas. Se trouxesse um foguete ou uma bicha-de-rabear, obviamente que não diria uma palavra. Não podia deixar de vincar a minha posição, tendo em conta o que sucedeu.
Em sinal da profunda discordância e incapaz de articular uma opinião, rebento todo o material pirotécnico que reúno. Por fim, numa demonstração de vingança contra a heresia que não vi interrompida, acciono a cavilha de uma granada e atiro-a para junto do meu inimigo.
No rescaldo, os resistentes dentários davam mostras da sua valia, mantendo-se intactos. Mas não eram os únicos. A papa de cor indizível, agora regurgitada, também.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação