Sim, só que não
“É impossível que o tempo actual não seja o amanhecer doutra era, onde os homens signifiquem apenas um instinto às ordens da primeira solicitação. Tudo quanto era coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se. Os dois ou três casos pessoais que conheço do século passado, levam-me a concluir que era uma gente naturalmente cheia de limitações, mas digna, direita, capaz de repetir no fim da vida a palavra com que se comprometera no início dela. Além disso heróica nas suas dores, sofrendo-as ao mesmo tempo com a tristeza do animal e a grandeza da pessoa. Agora é esta ferocidade que se vê, esta coragem que não dá para deixar abrir um panarício ou parir um filho sem anestesia, esta tartufice, que a gente chega a perguntar que diferença haverá entre uma humanidade que é daqui, dali, de acolá, conforme a brisa, e uma colónia de bichos que sentem a humidade ou o cheiro do alimento de certo lado, e não têm mais nenhuma hesitação nem mais nenhum entrave.
Miguel Torga, in «Diário (1942)»”
Miguel Torga já naquela altura dizia isto: “coerência, dignidade, hombridade, respeito humano, foi-se”.
Agora imaginem o que ele não diria nos tempos de hoje!
Estamos num tempo muito mais miserável, em que o ser humano se alienou a um conjunto de interesses para mim inconfessáveis perante vocês.
Eu (e muitos outros), na parte que me toca, como que a pregar num deserto, sigo pelo caminho que Miguel Torga definiu como o mais digno para o ser humano: coerência, dignidade, hombridade e respeito humano.
Dá trabalho? Muito, porque temos que nos reinventar todos os dias e obriga-nos a um trabalho de aperfeiçoamento contínuo e para nos mantermos assim verticais, temos que deixar muita coisa para trás e até perder amigos, porventura, e, em última instância, ganhar, eventualmente, alguns inimigos.
Enfim, toda a gente de bom senso sabe que o caminho melhor é sempre o mais difícil.
Por isso, muitos hoje substituíram a coragem de que Miguel Torga fala pela cobardia, porque a coragem significa perder coisas, materialmente falando, e a cobardia significa caminhar entre os pingos chuva sem se molhar muito e ir ao saber da corrente colectiva, que é sempre muito mais confortável.
Eu temo que andem a mentir às pessoas, que lhes andem a dizer que é possível se viver sem sofrer, sem caminhar por vezes sobre pedras e que se chega à felicidade num abrir e fechar de olhos.
A areia em si é muito agradável, ao caminhar é macia, mas não nos podemos esquecer que a areia provém da erosão duma rocha.
Assim, na nossa vida, para chegarmos à areia, primeiro temos que partir a rocha.
Não se deixem enganar, chegar à areia sem passar pela rocha é a maior mentira dos tempos modernos.
Vivemos um tempo de cobardia colectiva, em que 90% das pessoas se demitiram de pensar por si próprias e preferem o comodismo de seguir o que os outros 10% pensam por elas e, ainda por cima, sem se questionarem.
Não façam isso!
Eu não queria de todo que o Miguel Torga tivesse razão!
Incomoda-me que este Transmontano duro nas palavras, mas vertical nas convicções, passados estes anos, todos continue a ter toda a razão!
Desculpem o meu desabafo, mas a verdade é que ao ler o texto dele fiquei incomodado e até confesso inquieto.
O raio do homem está mesmo cheio de razão!
Sim, só que não
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.