O espírito reacionário borbulha na minha índole e a sua efervescência, por vezes não contida, causa a desordem, desencadeando as típicas discussões que mesclam a convivência e a crítica, nas quais a discrepância opinativa é destilada como de ódio se tratasse. Infundado ou devidamente explicitado, aquele apogeu do máximo estado de raiva é fulminado através de um simples olhar, de insultos ruminados e confinados à cacofonia dos pis ou à ironia sagazmente corrosiva dos vocábulos que parecem ser o que, na mais pura das realidades, não são. Opiniões, meros estados de graça!
O que supracitei induz-me ao ideal autoritário e profundamente fascista que antecede o 25 de abril de 1974 e às temáticas abordadas até então, ao grau de censura existente e à mediatização daquilo que se pretendia mediatizar segundo acordos e interesses de cariz político-financeiro. Olvidar personalidades que, à data, já exerciam e notabilizavam a sua importância no espaço sociocultural português convinha pelo facto de o medo flutuar nas margens do rio político, recusando pelejar contra o ímpeto revolucionário de uma esquerda absorvida pelos direitos sindicais e de um socialismo cozinhado com um marxismo em lume brando e defensor de uma sociedade sem classes.
Será que devo proferir o estado de graça relativamente aos que se sentem nostálgicos face à ausência de António Salazar?
O período pós-revolucionário significou impasse, agitação social e um mar de dúvidas estimulados por naufrágios que, felizmente, nunca se proporcionaram. Hérman José, no seio da intempérie, dançou sobre as ondas e, a pouco e pouco, libertou-se de um Portugal que, por si só, o enclausurava. Perante o alvoroço e o sentimento de inconstância, ninguém mais hábil nas bicadas subtis e frequentes deixadas à gama intocável e na teatralização de situações caricatas que pairavam no quotidiano.
Atraca aqui a revolta. Alguns portugueses desprezaram a rebelião que o humor sofreu, impulsionada por um homem só. Hérman José, a partir de 1975 e da RTP2, observa o non-sense, a parvalheira e a refinada maneira de fazer o espectador ter cólicas de tanto rir: eis Monty Phyton. Esse momento sinalizou o início das odes pândegas escritas e retiradas da sua genialidade. Do Sr. Feliz ao protótipo de David Attenborough, com passagens pelo comentador nortenho (José Estebes), pelo crítico cinematográfico Lauro Dérmio e por Maximiana. Espanta-me o facto de um país devoto e religioso até às entranhas como o nosso não acompanhar as leituras da bíblia e dos variados testamentos nela inscritos. Aliás, pelo pioneirismo demonstrado, serviu de alicerce a humoristas que agora se exibem na montra nacional, como Ricardo Araújo Pereira, Bruno Nogueira, Guilherme Duarte e tantos outros.
Uma postura intemporal e conhecedora da atualidade que o rodeia, sempre a encabeçar o tempo em que vive. A valorização que lhe conferem, do sketch mais básico ao mais elaborado, chega com anos de atraso. Mentalidades semelhantes às da censura da Última Ceia e das diversas entrevistas a personagens históricas foram cúmplices num atentado à democracia numa das vitimizações irrisórias da Igreja Católica. A impercetibilidade por parte de quem não o admira é, desculpando a redundância, impercetível. Existirá sempre uma elite telepática que o percebe e defende artisticamente perante a estagnação mental dos outros que o vulgarizam. Será que devo continuar a explicitação do estado de graça face às escolhas humorísticas de cada português?
O conservadorismo ainda encontra albergue em Portugal. Em 45 anos, o peito ilustre lusitano pouco ou nada se desenvolveu neste cânone. Sou apologista de uma ditadura que combata a ditadura instaurada naqueles que não admiram, gostam ou conhecem Hérman José. Será que me vão acusar de querer ser mais um Diácono Remédios?