A fim de fugir ao pensamento recorrente e negativo que nos é diariamente transmitido através dos meios de comunicação quanto ao Covid-19, focar-me-ei agora num outro assunto, também com uma assustadora importância, que tem sido palco em todo o mundo, de forma mais ou menos extravagante e impactante, e que em Portugal, muito infelizmente, começa a ganhar voz e a fazer eco na cabeça de muita gente. Uma espécie de pandemia político-penal, chamar-lhe-emos assim, para chamar a atenção do leitor.
Temos denotado um pouco por todo o mundo uma ligeira – em alguns casos não apenas ligeira – adoção de medidas punitivas mais severas, no âmbito do Direito Penal, ou pelo menos a intenção de as tornar assim, a fim de evitar a criminalidade, dizem. Muito impulsionado tem sido este movimento pelo chamado populismo penal, que tem vindo a florescer desde o fim do século passado, paradoxalmente à criminalidade que tem diminuído de forma generalizada.
Inequivocamente podemos concluir que a ideologia está associada ao pensamento da extrema direita – ou, nos países que alegam não ter extrema-direita, ao mais próximo da mesma – e Portugal, como acima referido, não é exceção. Aliás e particularmente em Portugal, o populismo penal está a ganhar a passos largos, mascarados hipocritamente pela defesa das ‘vítimas’, uma força e um descalabro preocupante. Alguns políticos estão, pelo aproveitamento destas, a obter mais reconhecimento e popularidade, dada a sua posição mais severa e extremista quanto ao trato do crime. Isto, sem plano de fundo, é bastante tentativo – manipulador – para qualquer cidadão, atendendo às mais recentes polémicas e infelizes situações com as quais temos sido presenciados. Tais posições padecem, ‘à vista desarmada’, de uma aparente ilusão de desinteresse e desconexão relativamente às posições políticas levadas a cabo pelas pessoas em questão, indo ainda estas ao encontro das exigências e receios da população. E é aqui que surge a noção de ‘populismo penal’.
Estas políticas abarcam um aumento da severidade e tempo das penas, o que transmite e reduz a pena ao mero carácter retributivo da mesma, negligenciando e deixando para segundo plano (ou terceiro, ou torna-se mesmo inexistente) o princípio subjacente à aplicação de uma pena: a ressocialização e futura reintegração do infrator na sociedade. Tal princípio pode-nos parecer menos relevante, uma vez que, na ‘boca do povo’, estamos a falar de ‘criminosos, violadores e assassinos’, não merecedores de segundas hipóteses e que ‘mereciam muito pior do que uma pena de prisão’. Todos já pensamos nisto, com mais ou menos reflexão, com mais ou menos devoção a esta perspetiva, o que é normal, sendo o ser humano naturalmente emocional. Contudo, nós não somos só emocionais e este é o momento em que temos que ter a capacidade de dar uso ao nosso lado que, segundo o que os biólogos e entendidos afirmam, nos distingue dos restantes animais, e pelo qual obtivemos a terminologia de animais racionais. É, sim, o nosso lado racional e através do mesmo podemos denotar a falta de lógica subjacente a uma pena perpétua, de tortura ou mesmo de morte.
O discurso acima mencionado visa primordialmente gerar o conflito, transmitindo erroneamente a ideia de que o cidadão comum, ou está do lado das vítimas ou do infrator, o que estimula o discurso de ódio. Contudo, e como indicado, esta é uma forma de pensar, transmitida por alguns políticos, que aliada a fatores socioculturais, atualmente muito disseminados pelas redes sociais, tem uma única finalidade – angariar votos. Assim sendo, a justiça será e é feita regularmente, com mais ou menos acuidade, nos termos no Código Penal, pelos Tribunais e não pelos deputados, tendo por base o respeito pela dignidade humana e conforme o Princípio Estruturante do Estado Português, que é a Separação dos Poderes.
Tendo, infelizmente, como referência, o trágico caso de Valentina, noticiado por tudo o que seja meio de comunicação, têm surgido comentários como:
‘Devia ser condenado para sofrer o que a criança sofreu!’
Atribuir uma pena equivalente, em termos físicos de sofrimento, à que o infrator cometeu não nos estará em nada a diferenciar deste, sendo o recurso à lei e às penas nestas previstas, com vista a futura reintegração do mesmo na sociedade, o que nos distingue e o que faz de nós, como país, um Estado Civilizado, Pacífico e Democrático de Direito. Estas penas não atenderiam a nenhum fim útil, defendido e estabelecido, no nosso Estado, bem como em convenções internacionais de Direitos Humanos.
‘Assim impedia que outros fizessem o mesmo!’
Este é sim o argumento mais falacioso que podemos encontrar e que é tantas vezes defendido. Basta atendermos a países como os Estados Unidos da América onde, em alguns dos seus estados, é admissível a pena de morte, e onde a criminalidade continua nos índices mundiais mais elevados, não tendo tido um efeito redutor em nada quanto à adoção de condutas criminosas. Muito pelo contrário, nos países com penas mais severas há tendência mais elevada pela população para a adoção de condutas criminosas.
Mais importante do que o refutar destes argumentos, e tendo em conta o panorama geral e não apenas o caso particular acima referido, é o facto de a justiça cometer, por vezes, erros, uma vez que é que exercida por Homens que, como todos nós e não apenas os criminosos, cometem erros e que merecem ratificação. Ora, condenando-se alguém à morte, e apesar de ulteriormente se vir a apurar a sua inocência, não haverá ratificação suficiente que restabeleça a vida da pessoa, enquanto que a aplicação de uma pena de prisão injusta dá, dentro dos possíveis e nunca totalmente, para ser remediada. Conhecemos a frase ‘pior que libertar um criminoso é condenar um inocente’ porque, felizmente e nos termos na lei nacional, não nos temos que debruçar com a realidade do ‘pior que condenar um inocente é matar um’.
Quem percebe um bocado de História e da Evolução das Sociedades facilmente denota a necessidade de se evitar este tipo de pensamento, a fim de não repetir acontecimentos passados, isto porque os Direitos Fundamentais dos reclusos, destas pessoas – sim porque não deixam de ser pessoas, independentemente do que façam – são sempre os primeiros a ser alienados, contudo o objetivo político por de trás é muito mais abrangente e, à medida que se vai ganhando mais poder, outros serão cerceados.