OPINIÃO: Viagem ao fundo do nada

O motivo desta crónica percorre os carris de nenhures, cessa nos apeadeiros do vazio e não encontra a minúscula sinalética ou obstáculo capaz de constituir um empecilho ao destino.

Parte da simplicidade de uma folha de papel, de um esboço demarcado por linhas ténues e amedrontadas, oriundas da finitude de um lápis a carvão: a princípio, a mão trémula e submissa ao comportamento refratário, oferece a maior das resistências; desconhecendo a razão do estímulo, consuma-se a conexão, o lápis é capturado pela temeridade e inquietação do pulso e, após troca de olhares intensos e pejados de significado, erigem-se as primeiras letras.

Os quatro cantos da folha de papel observam, com redobrada atenção, a rebeldia dos movimentos, a dispersão aleatória das letras, os inquilinos de um prédio, até então, reinava a paz e a concórdia. Cochicham entre si acerca das tralhas com que cada letra se faz acompanhar, destilando juízos de valor sobre a mais minuciosa delas e adentrando na especulação destravada. Depois, encerram-se as cortinas do espetáculo gratuito, os quatro cantos desbotam a sujidade dos pés brancos no tapete da sensatez e regressam às suas casas.

Recém-chegados, sentam-se, absortos. O aparecimento dos símbolos, desenhados pela entidade competente – ainda sem o bom senso de prestar qualquer tipo de esclarecimento – empurrou os quatro cantos da folha de papel para o extenso mar, afogueado pelo raiar branco e intenso da sua ondulação. Pairou sobre as suas cabeças, então, a desordem e a hesitação.

Anteriormente, a função de servir de extremidade a um rosto vazio, sem expressão e sem a menor e menos cativante história que pudesse entreter quem com ela se cruzasse.

E agora? Realizar o mesmo desígnio, salvaguardando a posse em seu terreno – fértil, ao que tudo indica – e delimitar a fronteira com a envolvência, numa demonstração de censura e repressão vocabular ou abrir as comportas e respeitar uma (possível) recôndita vontade dos carateres em partir folha fora (a aliteração é tanto propositada como ausente de mestria de pensamento), enchendo-se de ideais nómadas e partindo à cata do desconhecido? Aprisionar e correr o risco de suportar uma prosa mal redigida, um poema desprovido de lirismo ou um desabafo abominável?

Os quatro cantos da folha iniciam uma discussão acesa. Reagrupam-se em metade superior e metade inferior. Todos, sem exceção, almejavam ocupar o lugar cimeiro e sobre o qual desaguasse algo, por mais vazio que fosse. Porém, a mão escolheu arbitrariamente a disposição das letras, facto inculcado pela simetria do objeto: para dois deles, que lutaram ininterruptamente contra a meia rotação, tardando a diluição da interpretação e do significado, o mundo inverteu a marcha e subverteu a ordem, a harmonia e a essência.

As letras, por sua vez, escutam-nos com perplexidade. Sussurram e silenciam bramidos superiores, ansiando a propagação do eco em frases emocionalmente encenadas. Algumas instigam a ser parte integrante da conversa com laivos de fúria, outras são espelhos da ponderação e da acalmia. Nesse instante, outra infundada quezília se perpetra: as letras já não cumprem a direção e o sentido que lhes foi imposto e algumas tentam escapulir-se, empoleirando-se nos ombros e trepando parte costeira das mais débeis. A folha de papel dá mostras de ebulição, de querer cometer uma loucura, de esgotar a sua paciência.

A mão, enraivecida, faz embater o lápis na mesa – com estrondo – desassociando a ponta do objeto, amachuca o papel em forma circular e atira-o para junto dos papéis esparsos pelo compartimento.

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