Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Antes de mais, um cumprimento dirigido àqueles que ainda perdem tempo comigo e com a minha rubrica. Gabo-vos a paciência e a overdose de tempo livre que possuem que, por algum motivo, vos faz ponderar e incita à leitura destes ignóbeis relatos. Realmente, há burros com sorte. Têm plena consciência de que me refiro a vós, não têm? Ter o privilégio de privar com as minhas irritações e de perfurar a cápsula que cerca a minha existência sem largar qualquer cêntimo para ajudas de custo. Por norma, (diversas formas de) a Cultura – esse termo tão indefinido e ambíguo – é paga a peso de ouro, mas eu não quero ser esse tipo de pessoa. Presenteio-vos, porque faz parte da minha maneira de ser.
Se repararem atentamente no primeiro parágrafo deste discorrer, notam falsa modéstia, num momento inicial, e abundante presunção, num segundo momento. Vários cronistas com quem contacto introduziram os seus textos de acordo com as duas estratégias exibidas anteriormente, pelo menos por uma vez. Não sinto rigorosamente nada quando procedem deste modo, mesmo que o façam com mais ou menos donaire vocabular. O batimento cardíaco mantém-se, a respiração não perpassa o limiar ofegante. Só a fome se manifesta, a espaços. Juntei as duas táticas pela experiência, “a ver no que dá”. Estão autorizados a esmurrar as minhas feições, se assim o entenderem.
Sou um escriba atento às consternações da população e, por essa razão, sei o que estão a sentir neste momento: repulsa e asco da minha pessoa. Não repudio, porque também o sinto várias vezes ao dia. Agora que o leitor está amarrado à fúria do sujeito sem poesia, restam-me duas opções: render-me perante esse Bem Maior (a fúria, a fúria) ou direcioná-lo. Escolho a segunda, até porque levar uns sopapos – mesmo que a contar – faz dói-dói. Alerta, camaradas! Temos um problema grave entre mãos e que se alastra pelo nosso país há anos a fio! Lancemos um alerta, criemos petições no Facebook e colemos cartazes nas paredes das localidades a que pertencemos pelo exílio das pessoas que lavam os passeios de suas casas enquanto chove a granel ou enquanto o céu escorre pingas de suor! Pela defesa da pátria e dos passeios portugueses!
Sim, leram bem. Estes trastes não merecem um país como Portugal. Não estou a par do prólogo do fenómeno e a bibliografia que consultei até à data não tinha grafada essa informação. As conversas/entrevistas que delineio e realizo também não foram capazes de suplantar esta dúvida. Ainda estou a dar os primeiros passos no estudo desta área e é bem provável que, apesar da curiosidade e do interesse que deposito em cada estudo que efetuo, os trabalhos não apresentem uma estrutura tão sólida quanto aquela que desejaria. A perceção que reúno aponta no sentido de parte dos vizinhos da minha avó materna – excluindo este ser maravilhoso – após ouvirem e contemplarem pura precipitação, entendem pegar numa mangueira e limpar os supracitados espaços em cinco situações distintas:
– “Ora bem, o ciclo da água rega o passeio/pátio sempre que lhe apetece, por que razão não posso fazer o mesmo? Para a próxima, não compro a mangueira. Andei a aproveitar uma promoção para não poder lavar sempre que me apetece, não?”. O primeiro motivo para proceder à rega está deslindado.
– “Quem é que o ciclo da água pensa que é para limpar o meu pátio/passeio sem a minha autorização? Era o mesmo que ser assaltado e, findo o ato réprobo, o marginal ainda se apoderar da minha mangueira e limpar, a seu bel-prazer, o meu espaço. Era o que faltava, não? Se não permito ao ladrão, também não permito ao ciclo da água. Nunca diferenciei ninguém e não é agora que o vou começar a fazer”. O segundo motivo para proceder à rega está deslindado.
– Estar sob o jugo de substâncias psicotrópicas é, simultaneamente, um motivo para proceder estupidamente e uma justificação caso seja questionado, no futuro, sobre a prática. O terceiro motivo para proceder à rega está deslindado.
– “O meu nome é Sebastião. Sou um homem de família. Sento-me com as costas na posição mais reta possível, uso calças de sarja e sapatos quando sei que vou sujar-me porque é a pior indumentária que tenho, bebo um copo de leite antes das 22h (hora em que repouso) e sou contabilista há mais de 30 anos. Nunca cometi qualquer delito, cumpri sempre as normas de segurança da DGS, adoro os discursos do Presidente da República e trato os meus filhos por “você”. O quarto motivo para proceder à rega está deslindado.
– “Olhe, quando vim morar para cá, nunca tinha visto nada assim. Estou cá desde 1985. Nunca tinha lavado um passeio/pátio, nem quando a meteorologia o exigia. Nem para refrescar, nada. A certa altura, comecei a sentir-me arredio e só. Notava que os vizinhos olhavam de lado para mim e que não me respeitavam. Até ouvi um a dizer que não era digno de viver naquele bairro. Nem refutei, o medo fez com que fechasse as portadas da minha carapaça. Quando comprei a mangueira amarela que esguicha com muita força, tudo mudou. Tinha convites para tudo, até apalpar as mulheres deles em troca da mangueira emprestada. Mas que vivi tempos difíceis, vivi. O quinto motivo para proceder à rega está deslindado.
Quando exilarmos esta gente, ergue-se o próximo alvo: as pessoas que deixaram de utilizar o Teletexto e que o esqueceram com facilidade. A limpeza de um país dá-se ao ritmo de iniciativas desta linhagem.