Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
O fim está a bater à porta. Arrumem as vossas tralhas, peguem em duas ou três garrafas de Sumol e deixem-se levar.
“A tragédia shakespeareana inscrita em Romeu e Julieta, adaptada ao século XXI, é ficção que consta na grelha da TV Globo: famílias inimigas e desavindas que, fruto das suas quezílias, instigam a uma relação heterossexual com troca de variegados fluidos. A família que detém o passe da cachopa ambiciona a troca de votos com o típico enfezado enquanto a jovem sonha e aspira encontrar novamente o rapaz que tinha beijado na festa mais badalada da região. Fitaram-se com tal intensidade que a paixão não mais saiu deles, olvidando o câmbio de números de telemóvel e perfis de Facebook.
Momentos antes de encetar a demanda pela donzela, o cavalheiro teria de recorrer a um conjunto de inovações tecnológicas – SIRI e localizador do telemóvel de último brado – para encontrar a residência da cara metade, atirar a pedra minúscula à janela, insistir novamente na petit pedra porque à primeira nunca se dá fé e atirar outra porque à terceira é de vez, e declamar o arrebatador prosema, sem rima talvez, que o ChatGPT havia preparado horas antes. O responsável pelo engate desconfiava da própria capacidade de improviso e era a sumidade no que à precaução dizia respeito.
Ora, hoje está tudo mudado. As famílias rivais deixaram de içar a mão putrefata e permanecem estendidas no caixão das belas histórias de amor que azucrinam a cabeça dos papás. Não me interpretem mal. O ódio existe e continua a exibir-se ao melhor nível. Porém, quando o filhinho/a filhinha conhecem a luz dos seus olhos, tudo muda e a aversão dá lugar a abraços e a palavras belas que nos projetam para o mundo “está tudo tão perfeitinho, todos os presentes tomaram duche e estão cheirosos, todos mastigam com a boca fechada”. Aguarda-vos, progenitores queridos, a corrosão e o nó na garganta. Aguentem, é por uma boa causa.
Rabiscar o futuro. Eis outro procedimento muito frequente no mundo de hoje. “Mundo de hoje”, “hoje tudo está mudado”. De repente, escreve-vos alguém que já viveu imenso e que detém segredos que a vida sussurrou a poucos. As pessoas não se limitam a ir à festa de arromba, galar o alvo e apaixonar-se prontamente. Já ninguém conhece o código para se deixar levar pelo olhar ou pela expressão facial de um humano somente. Pelo contrário. A sedução conduz, a falta de respeito acelera a fundo e, quando não existem meios de imobilizar a fuga, a noção estardalhaça-se: varrem-se pistas de dança, lavabos, cabines de mestre de cerimónias, empregadas e bartenders. A lei do almíscar é fatal. A lei do holofote tarda, mas não falha.
Meditem sobre isto. Os quatro parágrafos entraram nos cuidados paliativos e, entretanto, falecem. A vida desaba dentro de momentos…”
Aconselho à pessoa – quando inserida numa taina amarrada até à alta madrugada e repleta de comida que cede ao jugo das liaças de diferentes estirpes – que redobre os cuidados relativamente aos seres humanos que o interpelam. Com base na minha experiência, a pior espécie é a estroina que faz olhinhos às possíveis combinações alcoólicas e mistura vinho de uva graduada com Sumol. Sou a favor do ato que comummente é designado por “dar nas vistas”, mas defendo a imposição de limites: um movimento irrefletido que faça estalar um prato/copo, um grito simiesco quando se escuta uma música do/a artista favorito/a ou um arrancar brusco de uma peça de vestuário. Tudo o que galgue esta barreira convida ao expressar da minha intolerância.
Topei a prática obtusa, fiquei algo desconfiado, mas a torrente de palavras já tinha flechado a reação que pensei ser a mais sensata: “desculpe, mas vou ter de a deixar falar sozinha. A menina acabou de misturar um vinho de trago a uma série de sabores com um refrigerante. Estará em plenas faculdades? Não creio”. Enumeraria, obviamente, os sabores e falaria com a prepotência vínica que assiste aos enólogos. Odeio interromper e quebrar o fio do discurso dirigido a mim. Foi pena. Estar naquele certame a ouvir falar de Shakespeare, de amor e ódio, das relações modernas, das orgias a céu aberto e do modo como as pessoas menosprezam os sentimentos representava tudo aquilo que considero ser uma conversa entediante numa noite que se alimentava da animação, da loucura, do carpe diem e de uns nacos de vitela que se cortavam à colher. A boca aberta era uma constante, como devem imaginar.
A rapariga despejou uma quantidade infindável de vocábulos durante (quase) duas longas horas. À medida que debitava informação e tecia analogias entre obras literárias e todas as peripécias incrustadas às relações humanas, tentei (ao máximo!) encontrar mecanismos que pudessem cessar aquele tédio: peguei na mão para admirar o relógio, elogiei a indumentária e o calçado, tentei colocar 10 bolinhos de bacalhau na boca – o sexto entrou no goto errado e estive quase um minuto sem respirar, até me efetuarem a manobra de Heimlich – virei costas durante 5 minutos (sem sucesso), passei a ponta e mola na mão ao estilo de Adolfo Luxúria Canibal numa noite de Rock Rendez Vous (RRV), assediei-a com impropérios ternos e dediquei-lhe uma canção dos Spandau Ballet. Nada funcionou. Por outro lado, consegui não ser esbofeteado. A educação vem de casa.
Ponto de exclamação. Após uma ida fugaz ao mictório, dou de caras com um beijo apaixonadíssimo. Era a tal, com um tal. O stock de Sumol levou uma tareia.