OPINIÃO: Ainda não me fiz entender sobre o título, mas estou a trabalhar nisso

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

A ver se nos entendemos sobre a utilização exclusiva do “a ver se nos entendemos”: principiar um diálogo sem invocar o nome da pessoa à qual nos dirigimos ou sem anteceder à expressão a partícula “vamos lá ver” assemelha-se, no fundo, a comer esparguete à colher, com o auxílio da mão disponível. É exequível e permitido, claro. Será prático? Será algo que constitua uma vantagem à conversa e/ou mensagem? Importará considerar a ponto de perpetuar – tentar, pelo menos – e, com isso, causar uma cisão e consequente afastamento da relação à qual se gabava a saúde, demonstrada através do entrecruzar dos dedos das mãos? Peço ao leitor que olhe para o introito como para um fórum que alberga comentários, pejorativos ou elogiosos.

Na estreia, o confronto assume o papel de gracejo: o emissor, alma que prima pelo esclarecimento e pela diminuição da amplitude do ângulo interpretativo, atira um “a ver se nos entendemos” e o interlocutor, face à surpresa vocabular, esboça um sorriso, embora cosa o inusitado aos seus botões; nas vezes que sucedem, o emissor, por temeridade ou ignorância face ao terreno escorregadio no qual imprime a pegada, reproduz a prática com precaução, introduzindo-a pacientemente e delineando, para tal, intervalos de dez a doze proposições, na fase inicial, e de seis a oito proposições, na fase avançada. Em conformidade com a aplicação do regime anterior, a encenação bucal do interlocutor ganha em gravidade o que perde em presença dentária.

Acusado o desgaste, o interlocutor pensa, enfim, pôr termo à zombaria. Cogita de manhã à noite, perde o apetite à segunda ou terceira garfada do ensopado de borrego, rega o sangue com álcool (pensa mesmo em substituí-lo), aguarda a chegada do sono e é incapaz de se entreter com hobbies. Em duas semanas, a graça deu lugar ao grácil. Elenca, no bloco de notas que traz consigo, um conjunto de comportamentos do qual extrairá o vencedor: o fulminante e, simultaneamente, respeitoso, porque empunhava categoricamente valores e princípios. Relê-os, uma, duas, três vezes, rasura-os por detectar-lhes as imperfeições. O pensamento assalta-o, de novo, com diferentes actuações, e, quase de imediato, ancoram a releitura e o riscar do escrito.

Nada feito. Reencontra a pessoa dali a dias e vê o caso mal parado. Consulta a psicóloga, expõe o caso por entre lágrimas e soluços, sufoca de ansiedade. Salvava-se a temperatura do gabinete médico: 37ºC, com a respectiva caixa de recolha da roupa visível e o consumo mínimo de três refrescos ou um antidepressivo à escolha. A conversa conduziu-o ao Certificado de Incapacidade Temporária (CIT), devidamente rubricado. Regressa a casa e debate com os apontamentos grafado. A suspeição acompanhava-o e golpes foram desferidos na confiança que o Valium tomado horas antes lhe conferira. Tentou distrair-se. Apontou o comando para a televisão, procurou uma das dezenas de streamings que assina, escolheu o que continha a série “Breaking Bad”. Repetiu os dois primeiros episódios, desconexo, como a refeição que é devorada sofregamente ao primeiro prato e que, ao segundo ensaio, desilude e se transforma no açoite parental “pois, o que faz isso é ter mais olhos que barriga. Quando era miúdo, gostaria de ter tido a oportunidade de repetir um prato destes”. Sem sucesso.

O derradeiro dia surge. Exaurido, o interlocutor, que já não exibia a mínima pachorra para o tiquetaquear do relógio, encontra-se com o emissor, em contexto de patuscada. O segundo, face à convivência regular e o sentimento de amizade que possuía pelo primeiro, ultrapassou a última fase de reprodução da expressão “a ver se nos entendemos” e colocou-a num nível elevado de rebuliço social: a proposição era reiterada de duas em duas ou de três em três proposições. A consternação passavam despercebidas somente às pessoas mais desatentas e ensimesmadas, no espectro compreendido entre os que galavam as miúdas de mesas próximas da qual se situavam e os que, a reboque de selfies, se esqueciam de mexer os lábios e de pausar os movimentos exercidos pelo indicador e pelo polegar. A música ambiente que galgava o tom do razoável e os brados imperceptíveis oriundos de cada grupo de amigos/conhecidos contribuíam, também, para o desalento descrito e sentido pelo interlocutor.

Quando o interlocutor estava a menos de 10º de fechar o ângulo ponta da falangeta/axila/ponta do pé, eis que é iluminado por uma ideia digna de atribuição imediata de genialidade. Pensou “ora, se esta pessoa que teima em falar-me não acrescenta à frase a) “Quitério”, b) “Vamos lá ver”, c) “Não me está a perceber. Volto a explicar:” ou d) “O/a senhor/a nunca percebe um boi do que eu digo. Deturpa constantemente as minhas palavras. Vá bugiar!”. Por opção, vou resgatar o humor fino que me caracteriza e perguntar-lhe se é muda a part-time. Aliás, até faço mais: vincarei a minha surdez a part-time e não corro o risco de levar com as suas trombas irritadas. Face à confrontação, o visado ver-se-ia na obrigação de reformular e adicionar, à expressão querida, uma das partículas enunciada”. Estava resolvido! Que milagre se deu! Que alívio! Menos um fardo! O plano era bestial, límpido, inteligentíssimo! Que limitações traria? Nenhuma. Uma irritação a menos já cantaria!

Encetado o diálogo, o emissor palavroso desbrava o caminho do quase monólogo, até que pronuncia o conjunto de vocábulos causador de frisson no interlocutor. Este, sem permitir o término da intervenção, deu vida ao plano que engendrara momentos antes e confrontou o colega.

Fez-se silêncio. Pausa na música ambiente, pausa no ruído das conversas circundantes. Os dois amigos cessaram a fala, levavam à boca tudo o que podiam, para a manter ocupada. A fala é retomada numa discussão que germina mesas adiante:

– Olha lá, por que razão pegas na faca com a mão esquerda? – inquire a mulher.

– A ver se nos entendemos… – responde o marido.

– São dois erros gravíssimos em menos de 30 segundos. Os papéis referentes ao divórcio estão aqui. – declara a mulher, atirando-os para cima da mesa com desdém.

Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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