Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Faltam-me algumas forças para prosseguir com este espécimen de rubrica. O desabafo a céu aberto ganhou em boçalidade o que perdeu em intimidade e transformou-se no aterro online visível a olho nu. No fundo, um objecto deste cariz serve para apertar o gasganete dos botões alheios e, simultaneamente, massajar os pés dos nossos. Ora, nada disto acontece aqui e dúvidas persistem se alguma vez sucederam. É uma questão de conteúdo, não de forma. Na altura, quando falei com a directora do Jornal Referência e lhe apresentei a proposta que tinha para acoplar na Opinião, pareceu-lhe – qual será o termo empregue nesta situação? – interessante. Mal sabia ela que a desilusão se perfilaria à 38.ª crónica.
Um indivíduo faz-se de amigo dos cadernos A5, lê alguns livros e revistas aos quais realiza autópsias e biópsias na pauta envolvida pela capa preta, tenta acompanhar alguns programas televisivos que se acercam dos temas que marcam a actualidade, debate em fóruns online sobre assuntos variáveis – desde a presença de água em Marte às dicas para combater o “raspandinhismo”, com passagem pela polémica que estalou no caso Dudu/Marco Paulo – e atenta na maneira como a mãe mexe o arroz ao ponto de não o encruar, mas tudo é em vão. Não há matéria passível de gatafunho. Esperneio um bom pedaço, faço birra e apronto-me para dormir. Zangado, encerro as pálpebras.
No tal acordo (de boca), propus-lhe uma crónica a cada duas semanas por uma razão que me pareceu de fácil compreensão: se em apenas 24 horas germinam coisas que deus-me-livre, imaginem em 15 dias. Confesso que ainda tentei gizar a multiplicação anterior, mas os números, por volta do 10.º ano, apresentaram-me ao amigo asco, elemento com o qual ainda privo diariamente. “Em 360 horas, constroem-se edifícios, resolvem-se questões relacionadas com o Serviço Nacional de Saúde, o Pedro Gonçalves recupera de uma lesão, o Luís Severo pode perfeitamente escrever um novo álbum com 11 músicas – ou até mesmo um EP, se a inspiração ousar escapulir-se – e o Elon Musk arranja uma maquineta qualquer que lhe foge do controlo e o deposita no hospital”, pensei eu. Bem, pequei. E guardei a calculadora na gaveta.
Afinal, constato que o turbilhão de assuntos vaza os dois blocos que intercalo. E, como não tenciono endividar-me e pagar as restantes despesas com folhas de papel, negligencio aspectos que, bem cozidos, davam caracteres a um documento Word ou àquele ícone onde podemos garatujar notas e, bem cosidos, tiravam os tremores aos que acompanham a bodega. Alcancei, finalmente, o desafio gramatical do dia: diferenciar, na mesma frase, as palavras “cozer” e “coser”. Não há tempo para o momento porque, em escassos segundos, o fora de moda ocupa a sua propriedade. Em 2025, passar uma tarde no bucolismo de um prado à escolha do freguês equivale a perder horas de informação (caso esteja com disposição acima do razoável, pedia que lê-se parte da frase anterior imitando uma peixeira). Ninguém tem tempo para ter tempo.
“Ah, e se fizer um texto que orbite em torno dos 10 seios que o BE gentilmente convidou a sair? Melhor! Se eu for à biblioteca mais próxima requisitar alguns livros sobre Economia, coligir a informação que me parecer mais importante e redigir um artigo de opinião no qual expresse as razões de Portugal estar em crise desde o rubricar do Tratado de Tordesilhas, mais coisa, menos coisa? Não, não. Já sei. Recentemente, vi um filme que considero um clássico: O Acossado. Considero pela consideração dos que o consideraram anteriormente, claro está. Escrevo uma breve crítica, introduzo-me às redacções e ergo a minha carreira”. Passou-me isto pela cabeça e muitas outras coisas.
(Um minuto de silêncio pela partida do cineasta David Lynch. Cumpra escrupulosamente ou retire-se!).
Todavia, há sempre uma luz que nunca se apaga, já diziam os The Smiths, o Morrissey quando a reclama como património e o Johnny Marr quando ousa, na opinião do seu arqui-inimigo, desrespeitá-lo. A minha genialidade sobressai, principalmente, em situações de reduzida agilidade mental e intelecção à moda da pessoa que leva abadas sempre que brinca ao jogo do galo. (De repente, senti-me com oito anos, por dizer “brincar ao jogo do galo”. A expressão é adorável pela ingenuidade que comporta. Aposto que me querem apertar as bochechas carinhosamente. Vá, vá, não temos tempo para isso). Eis a solução para o problema que me assolava desde a manhã de hoje: transformar a rubrica num diário.
Pois é! Encontrei a pólvora! Datar frases ou parágrafos e exprimir sentimentos com significativa frequência resolve a falta de conteúdo da ex-rubrica, actual diário. Deste modo, não há nenhum motivo que me conduza ao autodespedimento. Seria molesto despender de um hobbie que até gramo e contribuir ativamente para o sedentarismo. A antítese não poderia, de jeito algum, sumariar este texto. Vou prosseguir.
Sob o prisma do vasto universo dos utensílios literários, o diário sobre um comum mortal deve ocupar as posições derradeiras por reunir pouco ou nenhum interesse à grande maioria dos leitores. Até aqui, penso que estaremos todos de acordo. Mas, e há sempre um, como a própria designação indica, no “diário” vale tudo.
“Se no diário vale tudo, então por que razão é que não propuseste esse formato inicialmente?” – atiram os impiedosos.
Pois! – respondo.
Um anticlímax é capaz de ser isto.
Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação