OPINIÃO: Enquanto saía disparado em direcção ao corredor exíguo, à medida que despia a farda de trabalho

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Bem-vindos ao workshop de escrita humorística à medida que se assobia e trauteia, repetidamente, a música “Amor a Portugal”. O meu nome é Artur – inventado para o efeito porque com isto da deficiência na protecção de dados não se brinca – e sou o vosso professor. Estou com a farda de uma empresa de limpeza – eu rimo sempre que quero – porque a minha roupa estava toda para lavar. Foi uma semana complicada pois, a acrescer aos serviços ao domicílio em trajes mingados, ainda cooperei com a equipa na faina do próprio estabelecimento. É um part-time para arranjar umas coroas por fora, a vida está difícil. Só para alguns. Para outros, está um palavrão à escolha. Peço que se apresentem e que o façam enquanto cortam uma unha de um dedo do pé. Para o caso de a tendência suicida estar de visita à sala, sublinho a palavra “unha”.

A sala vazia entusiasmou-se com a abordagem original e apressou-se a satisfazer o pedido do docente. Afinal, quem é que tinha o canudo? Respeitem a pessoa que faz vista grossa aos “copianços” e às cábulas utilizadas pelos discentes. O primeiro resumiu a sua existência aos 120 segundos que não quis ultrajar e depois foi um corridinho, até ao derradeiro. A emissão voltou a mim e aproveitei para afirmar que estava muito entusiasmado com as duas alunas da fila a meio do auditório, principalmente pelo facto de ter visto as meias de vidro à que me pediu para ir à casa de banho ainda as apresentações iam no adro. Quanto a nomes, fixei somente os inferidos pelo leitor face à informação prestada. Admiti, também, estar meio enjoado pela refeição que fizera horas antes: um cozido à portuguesa com muita couve, muita cenoura, muita carne gorda que se entranha nos dentes e que apoquenta a paciência de Job.

No final da aula, desliguei o microfone disposto sobre a mesa no grande estrado e passei levemente o espanador no objecto que tem a capacidade de projectar a voz. O pó não espreitava pelos pequenos poros, mas toda a gente sabe que há sempre a mais pequena porcaria naquilo que é inanimado. Aquelas quatro meias de vidro, quase gémeas e nada siamesas, ainda faziam aeróbica na minha mente. Se me pedissem para contar quantas nódoas pequenas teria aquela peça de vestuário, eu respondia correctamentre. A arte de contar quando o estudo está em movimento aflitivo – com as mãos a proteger a bexiga – é das mais subvalorizadas e não se descortino a razão. A consagração artística de um campo de actividade parou no séptimo posto. Porquê? Deixo esta pergunta para reflexão.

Retiro as luvas de Elizabeth I, adquiridas num leilão que perdurará na minha saudade. A propósito dessa noite, volto a solicitar as gravações da câmara sobre o alpendre, na qual uma rapariga que tinha o corte de cabelo (e pintura) idêntico à personagem Estefânia, da série infantil Vila Moleza, se aproxima e me aplica sucessivos petrissages, quando constata que tenho o morango do daiquiri a fazer peito à minha goela. Recebo a segunda turma daquele horário pós-laboral: seis mãos cheias de nada que frequentaram, em anos anteriores, as cadeiras de Introdução à Cócega e Análise do Riso II. Um aluno questionou-me acerca do agastamento que eu deixara, por denunciada sinceridade, transparecer. “As luvas, professor? O que se passa consigo? Está doente? Alguém faleceu? Quer um copo de água?”. Respirei fundo, retoquei o batom Clementine Sauce e sussurrei “Gaspar, ontem estava a fazer o Totobola e esqueci-me, por completo, de preparar a aula da tua turma. Isto nunca me aconteceu, mesmo com três copos de Aldeia Velha, depois do queijo com marmelada. Diz aos teus colegas, eu não sou capaz!”.

Saio disparado em direcção ao corredor exíguo, à medida que despia a farda de trabalho. A lavandaria que adoptou, durante um dia, a roupa de part-time era já ali, a poucos metros. O opróbrio era ferida que ardia, sem se ver. A sério. Nunca se viu tanto opróbrio no caminho que separa uma sala de aula de uma lavandaria. E, se se viu, apresentem-me as provas. Distraidamente, irrompo pelo estabelecimento que marca um compasso aborrecido. Ia sem paciência para escutar aquela sonoridade, confesso. Gosto de pensar na lavandaria como escape à quantidade de seios que sou convidado a apalpar, à quantidade de restaurantes e bares chiques nos quais sou convidado a marcar presença ou à quantidade de avenças que me querem depositar na conta somente por ter como ídolo o Tio Patinhas. Mais do que isso, é atribuir à lavandaria o papel que ela não desempenha. Deparei-me com um concurso de declamação de poesia lusófona, moderado por um amolador. No cômputo geral, foi agradável, mas continuo a dizer que o som do afiar das catanas não pertence àquele certame.

A última máquina cessou o movimento ao mesmo tempo que um dos concorrentes, um tanoeiro do século XIX, recitava “Urgentemente”, de Eugénio de Andrade. O amolador bradou:

– Isto é um milagre em termos de precisão. E o mais irónico desta situação é que o relojoeiro, após eu ter cronometrado a sua intervenção, falhou na previsão que fizera inicialmente por seis segundos.

– Talvez seja só uma coincidência – retorqui eu, desconfiado. Eu cheguei a meio do espectáculo, precisamente quando a enfermeira estrangeira – penso que o é pela farda e pelos acessórios que aqui apresenta – saiu para repor o stock de Persil.

A visada levantou-se de supetão e, de dedo em riste, virou-se a mim:

– Oiça! Em primeiro lugar, não admito que me chame enfermeira. Já viu alguma enfermeira, nos estabelecimentos hospitalares, com um decote deste tamanho e com estas algemas do último grito? Eu sou stripper com muito orgulho, entende? Raios partam este boneco. Saia-me da frente porque eu tenho uma aula de Educação Sexual para leccionar e já estou atrasada!

Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação.

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