OPINIÃO: Os Razzies da nossa praça

Sinto-me inatingível. Deve-se, sobretudo, à declaração inegável que lerão dentro de momentos. Porque dizer ou escrever sem contestação e o levantamento súbito de uma cadeira – prática sem razão aparente, aliada à não concordância – confere ao emissor autoridade, sabedoria e pensamento crítico. Nota-se que existe uma preocupação no estudo das questões profanas ou existenciais, por menor que seja. Não estamos perante a presença de alguém que se limita a abrir a boca, que articula palavras desprovidas de sentido e contexto e que as discorre à cata de tentativa de compreensão – a fauna e a flora também se inserem nesta massagem ao ego. Vou deixar de engonhar (um viva à gíria)! Na vida, existem, pelo menos, duas coisas que se desenvolvem e provocam metástases: o cancro e a costela cinéfila do ser humano. Faltou-me a concisão, gastei tinteiro inconscientemente…

O conjunto de ossos militou bastante durante o confinamento e as primeiras etapas do desconfinamento. O ritual mantém uma forma sem adultério. E – pasme-se o leitor – é contagiante. O vírus propaga-se de modo veloz, diria quase voraz, quer pela transmissão do comando da televisão de mão em mão (de uma ponta a outra do sofá), quer pelo dedilhar no teclado do computador. O número de infetados por Sérgio Leone conheceu um aumento significativo, o número de internados João César Monteiro é menor quando comparado com o dia anterior, o número de mortes por Quentin Tarantino sofreu o maior incremento desde 27 de março (altura de ultrapassagem do pico da pandemia, sem querer precisar), o número de recuperados por David Lynch diminui consideravelmente desde as comemorações do treze de maio. Deste modo, teço um alerta destinado aos fatores que poderão esbater e diluir a perspetiva romântica, jovem e despreocupada, sem olhar a números e gráficos: os filmes de ficção científica e as tragédias romanescas a la Assembleia da República.

E, para além de me sentir inatingível, por razões já citadas, incorro na ousadia de sugerir entretenimento e serviço público. De graça, sem reaver um tostão. (De Graça, mais adiante). Seguem-se as sinopses e as tramas que, no fundo, alegram e causam o sentimento mais extremado de um planeta especado no sinal vermelho do trânsito:

Autoeuropa e a confirmação desde sempre anunciada. De relance, pode ter uns ares de romance de Gabriel García Márquez. E tem mesmo, apesar de não ter morrido ninguém. É uma pequena sequela do mandato do PR (protagonista) num reino ficcional ao qual não atribuo designação e o anúncio da sua recandidatura: as reminiscências não são percetíveis, mas fica no espetador a ideia de ele a anunciar implicitamente desde há dois anos para cá. PM (amigo de PR) atiça esta descoberta, mas esconde um passado recente que o pode colocar em perigo – 5 estrelas.

Os incomunicáveis. O primeiro capítulo da saga descrita anteriormente, com destaque para o aparecimento do MF (melhor amigo e companheiro de guerra de PM). Mas nem tudo é cor-de-rosa. As duas personagens pretendiam combinar um resgate a um banco, mas quando PM se preparava para sair de casa e ir ao encontro do seu compincha, MF já estava de saco ao ombro com a quantia. Uma falha de comunicação que instigou ao quase desentendimento, mas o final é feliz… – 4 estrelas.

A opinião e o discurso entram num hemiciclo. Durante a celebração de uma data essencial na segmentação da sociedade do filme, a conversa entre oito entidades foi filmada num só plano com a direção apontada para um púlpito erguido numa sala. O narrador – quem quer que ele seja – encontra-se, certamente, descontente com o produto final da sua obra: a finalidade assentava na distinção entre opinião democrata, opinião não democrata, opinião devota, opinião ecológica e uma carta ao filho. Isento do chamado “mindblowing”. Uma sátira do radicalismo, da superficialidade e do trato pelas relações humanas. Esperava-se mais sintonia entre o público… – 4,5 estrelas.

O sentido da cultura. A trama debruça-se sobre a eterna questão da desigualdade. Neste caso, de financiamento de sucursais informativas. Os dependentes e independentes do Grande Responsável (a nomenclatura de Orwell é inalcançável) são tratados de forma distinta. Os que possuem publicidade e os que não usam dela. Os artistas, os técnicos e os funcionários à sua volta. Este repensa a sua proposta e faz uma nova oferta. A contestação permanece. (Surge, no meio do filme, uma interrupção de onde irrompe um tweet iluminado a comparar os órgãos visados a uma sapataria). Um filme lúcido e realista. – 5 estrelas.

O festival dos festivais. Sexo, drogas, álcool e todo o tipo de música. De súbito, este modo de vida é cancelado e vitimizado pela existência de uma doença mortal. Contudo, existe uma pequena fação organizadora e apoiante não conformista com a decisão imposta pelo Grande Responsável e que tenta, a todo o custo, contrariar a sua decisão. Será que o plano é exequível? Que dificuldades poderão encontrar? Que apoio irão obter da sociedade fictícia? Até onde estão dispostos a lutar? A resposta a estas perguntas está no filme, evidentemente – 4 estrelas.

Cinema de qualidade, gratuito e inadulterado após desconfinamento tímido. O que pode querer mais?

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