Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
As flores tendem a murchar. As caravanas tendem a passar. A criançada tende a aproveitar o Natal de maneira inconsciente e, por essa razão, repleta de felicidade imensurável – visei a época natalícia pela febre que se instala em certas almas.
Aparentemente, não fazer referências à festividade ou demonstrar interesse sobre práticas relacionadas durante o mês de dezembro é não ter compaixão pelo próximo, é não querer emanar felicidade momentânea e é não promover a paz no mundo. É não ter vida; ora, aproveito precisamente esta altura para o apedrejamento público na praça mais próxima.
A vida é aborrecida. Por isso, falemos do seu perfeito oposto. Embarquem neste navio a convite do almirante desmancha-prazeres e ingressem numa visita à prolepse derradeira. Começamos pelo fim. A morte acha graça ao animal, independentemente da racionalidade. Deve ser a única. Finta-nos como se fosse El Pibe, prega-nos rasteiras que nos esfolam a estadia por cá. Aponta na nossa direção, movimenta-se por entre calçadas inóspitas, abraça-nos sem aviso prévio e consola-nos. É uma querida. Fazemos uma vaquinha ou alguém se disponibiliza para lhe oferecer uma prenda? Tenho uma lista de todos os assuntos que foram abordados nas reuniões que decorriam no Cenáculo. A casa do Antero tratava temas, mas era só para inglês ver. Aos que realmente interessavam, nem lhes tocava. Os arranjos que jazem no cemitério correspondem a um dos tópicos que ilustram, na plenitude, um claro desprezo pelo que constitui um verdadeiro flagelo. As Artes e Ciências podiam ter feito uma pausa, nem que fosse a única. Os críticos de um sistema que viria a comprovar a sua decrepitude anos mais tarde (início do sec. XX) e de movimentos literários pachorrentos não foram além disso.
A questão do adorno de jazigos merece dissecação. Ninguém lhe dá – ou tem dado – a atenção que ela merece. Os mais simplórios – a casta Zé ovinho, como gosto de designar – esquematizam deste modo: se as flores estão boas, ficam mais uma semana a fazer companhia ao falecido; se as flores não estão boas, vão para o lixo e trata-se do assunto, variando ou não a protagonista do vaso. A análise mais reles da história, não é verdade?
Que falta de pundonor! Tratar assim um arranjo floral! Onde já se viu? Isto acontece. Às vezes, à frente de crianças. Os mais eruditos – aqui constam familiares – têm tato diferenciado. Passo a reproduzir algumas consternações: “foste ao cemitério? As flores ainda estavam boas? Mudaste a água? Não te esqueceste da velinha, pois não? Aquilo também precisava de uma lavagem. Esfregar a pedra bem esfregada. Não sei se lavo com lixívia porque tenho receio que possa alterar as propriedades do mármore… reparaste na campa da D. Amélia dali da rua que cruza com esta? Aquilo parecia musgo! Estava sem brio nenhum! Pôr aquelas flores quando se aproxima uma época como o Natal? Aquilo tem algum jeito? Não podemos deixar um jazigo daquela maneira! Os verdes estavam tão apodrecidos, o cheiro que dali brotava… um horror!”. Não há ciência, pode ou não existir arte (considerando as opções estéticas envoltas num vaso de flores), mas a filosofia persiste. Ouvir familiares debater sobre o tema transporta-me para a Grécia Antiga: altura em que a Filosofia ocupava o palanque e os mortais se sentavam em torno dela.
Imagine que Elisa Doolittle – antes de bater à porta do Professor Higgins e de o convencer a ensinar-lhe a falar corretamente a língua inglesa – é surpreendida pelo mestre da fonética na banca que compõe o mercado de Convent Garden e este a inquire sobre o ciclo das flores nos cemitérios, dada a sua ignomínia. Que posição adotaria Elisa? A simplória ou a erudita? Será que o Professor Higgins, depois da explicação da comerciante de classe baixa, lhe ensinaria a fonética? Casar-se-ia Elisa com Freddy?
Teria Elisa um negócio? George Bernard Shaw deixou a desejar em Pigmalião. Esperava-se mais. A emancipação da mulher e do seu papel na família e na sociedade, o imaginário da mulher perfeita, a desigualdade entre classes, as críticas dirigidas aos finais felizes, o destrinçar de conceitos como a realidade e a aparências… e os grandes temas? Quando é que se abordam grandes temas em livros?
Outra questão que merece escrutínio é o papel. Qual papel? O papel. É isto só. A informação acerca dos óbitos circula em papéis dispostos nos vidros dos estabelecimentos de atendimento ao público de estirpes variadas. Mais do que pelo Facebook ou pela secção de necrologia do Jornal de Notícias. Se o papel não está à vista, não faleceu ninguém. O sino confunde alguns dos meus familiares. O sino tocou, mas há quem oiça mal. Há semi surdos na terra da minha infância. Os Gato Fedorento visaram Moreira de Cónegos num sketch e ninguém se apercebeu.
Infelizmente, neste país, os assuntos que não se cinjam à capital do império perdem valor e atualidade. Fala-se na digitalização de tudo e mais alguma coisa, mas grande parte da população de Moreira de Cónegos atualiza o seu obituário à moda antiga. O mundo devia prestar atenção a Moreira de Cónegos.
Um Feliz Natal a todos!
Os amuados desta vida vão dizer que não é sincero. Na realidade, acertaram. É fingimento puro.
Sendo assim, um próspero Ano Novo!