OPINIÃO: Descortinar as situações pré-traumáticas das guerras

Simão Mata, psicólogo

O meu último texto neste espaço chamava a atenção para a necessidade de fazermos um trabalho de desconstrução das situações pré-traumáticas das guerras, isto é, de descortinar as verdadeiras causas da violência sistemática a que assistimos diariamente nos meios de comunicação social. Dizia ainda que os psicólogos, muitas vezes tão hábeis na avaliação e intervenção nos aspetos pós-traumáticos, deveriam ser um dos agentes ativos dessa desconstrução pré-traumática.

Pois bem – ou pois mal… – desde essa altura que os conflitos e a violência se têm agudizado a cada dia que passa. A este respeito, a situação na faixa de Gaza atinge proporções verdadeiramente alarmantes.

Os relatos de um sobrevivente de mais um ataque israelita neste teatro de guerra, que vitimou mais 90 palestinianos no último dia doze deste mês, dá conta do clima de horror vivido neste local: “Eu não conseguia nem dizer onde estava ou o que estava a acontecer. Saí da tenda e olhei ao redor, todas as tendas estavam derrubadas, partes de corpos, corpos por todo o lado, mulheres atiradas ao chão, crianças pequenas em pedaços” (JN, 14.07.2024). Penso que este retrato fala por si acerca dos fatores ansiógenos com que os habitantes de Gaza têm de viver diariamente.

O sociólogo alemão Anselm Jappe, procurando caracterizar o que está em jogo nesta forma de violência atroz e, até certo ponto, autofágica da humanidade – um dos seus livros chama-se mesmo A sociedade autofágica * – aponta para o caráter autodestrutivo do capitalismo atual, uma pulsão de morte que confunde vítimas com agressores a todo o momento: “As tendências suicidárias do capitalismo mundial encontram-se nas tendências suicidárias, latentes ou declaradas, de numerosos indivíduos; a individualidade do capitalismo corresponde à irracionalidade dos seus sujeitos” (2019, p. 260). A primeira tarefa a realizar deve ser, portanto, explorar os caminhos desta irracionalidade humana, possibilitando outros escoamentos e possibilidades que não a barbárie e o flagelo constantes. Penso que muito pouco tem sido feito neste sentido.

Foi também por estes dias, paralelamente aos atos hediondos perpetrados contra homens, mulheres e crianças não só em Gaza mas em vários pontos do planeta, que teve lugar a 75.ª cimeira da NATO, cerimónia com pompa e circunstância feita em Washington. Os vários líderes mundiais – 32 no total – aproveitaram a efeméride para assegurar o compromisso dos países signatários em reforçar o armamento dos seus arsenais, numa estratégia agressiva, militarista e bélica que em nada apaziguará a ordem mundial.

Numa altura em que devíamos estar a discutir as causas e as guerras, procurando caminhos para as evitar, atenuar e debelar, eis que a forma como as potências mundiais – com os EUA à cabeça – pretendem resolver o problema: balas com mais balas, sangue com mais sangue e mortes com mais mortes. Não é este, certamente, o caminho dos democratas e de todos os intelectuais que perfilham a sua intervenção pela paz mundial e pelo respeito inalienável da soberania dos diferentes Estados-Nação. Descortinar as situações pré-traumáticas das guerras revela-se, pois, como a mais importante tarefa dos psicólogos e dos demais cientistas sociais.

* Jappe, Anselm (2018). “A sociedade autofágica – capitalismo, desmesura e autodestruição”. Lisboa: Antígona.

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