Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
A última semana de trabalho finar-se-á e depois chegam as férias. O tempo onde a esperança é renov-. Não, não, não. Vou apagar. Principiar um pensamentozinho que pretendo vestir com alguma respeitabilidade desta forma assemelha-se a estender a procura do bucolismo, da generosidade e da dádiva a George Costanza. O melhor é começar de novo. Aqui vai. Após um ano de trabalho árduo e moroso, eis-me aqui, ajoelhado perante as mereci-. Para tudo. Isto é rasca. De lírica barata, acamada ao próprio fel. Vou encostar a engenhoca e espairecer.
Desço as escadas e, ao fundo, surge a minha mãe com a chávena de café à temperatura ideal. Agarro-a de um longo trago, sento-me à secretária e enceto o afazer. Ora bem, vamos lá escrever uns parágrafos para entregar enquanto bebo o café matinal e desafio a desidratação. Na Venez-. Corta, corta. Isto é execrável. Não tem a mínima graça, é forçado e tem zero interesse debitar tal informação. Ah, espera. E se for isto. Então e ninguém fala do Saara Ocidental. Que diferença faz da situação entre a Rú-. Não, não serve. Vou ver o canal Now, sempre me entretenho.
Denota-se uma tentativa clara de sátira do autopoliciamento. Podia apostar na ferramenta até ao final da brincadeira, mas o aborrecimento está à distância de um clique. Fica para uma próxima. Encerro a prática algo contrariado. Ajuda se gritarem “só mais um, só mais um, só mais um”. Reparem, eu escrevi “tentativa”. Anseio satirizar, pode dizer-se tratar de um objetivo de vida para cumprir antes dos 30: apesar de o 9.º ano de escolaridade lançar as sementes para abraçar a “arte”, fiquei agarrado às personagens do Parvo e da Alcoviteira até ir para a universidade. Samica, foi isso que me tramou. Gil Vicente é um traste.
Porventura, já se sentaram confortavelmente a pensar no que aconteceria se os humanos que açoitam teclados – o grau de masoquismo não é condenável – e os que escrevem convencionalmente juntassem todas os elementos rasurados, as metades e os três quartos de palavras apagadas numa ou várias composições. Caso não tenham realizado o exercício, saúdo-vos porque certamente pouparam tempo a fazer algo bem mais útil. A resposta é simples e desoladora: nada digno de realce, atentando a que figurasse o mínimo sentido no conjunto de frases e entre as mesmas. Por oposição, teríamos algumas réplicas de tatuagens que galo em braços, pernas, troncos e cabeças e partes que sinto não pertencer àquele tipo de mensagem.
Esqueçam os apontamentos anteriores. A ideia inicial nasceu tão frustrada e condenada ao logro quanto a apreciação feita ao filme de Cecil B. DeMille, The Ten Commandments, por Lauro Dérmio, um dos críticos de cinema mais aclamados do país na década de 90. O intuito passava por visar o secar da tinta que reside na caneta neste texto e apontar a prática deslindada por todo e qualquer mamífero quando tal ocorre, por meio de paralelismos e algumas tiradas que considerasse risível. Além disto, introduzir o autopoliciamento excessivo e misturá-lo nesta salada constituía outra das pretensões. A composição musical digna de acompanhar este texto é um prolongado e aflitivo dó.
A ausência de um plano B reitera, explicitamente, a impreparação que tenho para escrever. Escolher um tema, desterrá-lo em detrimento de outro que aviva a memória e recuperar o primeiro porque o outro estanca no tronco mais próximo. Depois, escrevo, apago e reescrevo vezes sem conta até receber a bula do pontífice neurónio. Avanço, com alguns retrocessos e “sempre a ouvir com tempo, no tempo que quero, à velocidade que escolho”. O resultado, esse, é sempre distinto comparativamente ao esboço que desenho. Para pior, claro está. A minha escrita é uma repetição amnésica da primeira compra de noodles: apanha o anúncio do produto, constrói uma experiência trapaceira a mando do cérebro, apressa-se para comprar noodles e, mal os prova, percebe que preferia deglutir um guardanapo. A frequência com a qual me desiludo com expectativas geradas é elevada.
Queixar-me da vida ofende a equidade porque tenho vivido mais à pala da Madre Teresa de Calcutá do que da madrasta. Mofina Mendes, grávida do Messias e acompanhada pelas quatro damas de honor (Prudência, Fé, Humildade e Pobreza) aquando do anúncio do Ano Gabriel, perde a tutela do gado que vigiava e, mesmo assim, é paga com um pote de azeite, que acaba quebrado. Eu, esgalgado de vocabulário e de temas que estimulem o debate e que criem correntes de pensamento, acompanhado pelos padrinhos de casamento (Desapego, Incontinência, Superficialidade e Debilidade), perco o controlo das operações que planeio quinzenalmente e a direção continua sem me apertar o gasganete. Equivale, pelo menos, a dois potes de azeite. Repito: Gil Vicente é um traste. Eu sou-o de igual forma porque fiquei vidrado no Par-. Esqueçam, eu já falei nisto. As repetições começam a causar-me consternação.
Entretanto, exalo o bafo de café para a BIC que tenho na mão. A tinta estancou e a ponta já mal rasura. Exalo uma vez mais. As letras vão perdendo a-.