OPINIÃO: Faço tudo e mais alguma coisa para reverter a situação. É o que é

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Quo vadis, cosmos?
Nós, a desinteressada gente, adoraríamos saber.
Nomeadamente, pela possibilidade de todos e mais alguns apanharem boleia.
E, desse modo, menor quantidade de gasóleo derreter.

Para aquecer, um pouco de poesia. Às vezes, diz que faz bem. Revolve as entranhas, dá-lhes três voltas, sacode-as ufanamente e estende-as ao sol. Com o beijo do Fado, e com a humidade a hibernar, todas as entranhas e mais algumas perderão a água que as dilui. No fundo, secarão. “A poesia seca entranhas” é o corolário deste breve parágrafo. Está mais do que autorizado a abandonar este separador. Na realidade, está autorizado a fazer aquilo que as suas entranhas ditarem, exceptuando a aplicação de um juro que estabelece o preço deste serviço em concreto. Caso venha a acontecer, não estranhe a ira. Saia da frente ou permita-se ultrapassar. “As minhas entranhas estranham as taxas” traduz o corolário pós-corolário inicial.

Apague do computador cerebral tudo o que leu. Urde-se uma quadra munida de rima cruzada e garatuja-se um parágrafo sobre a mostra de entranhas ao sol para que efeito? Qual será a pertinência do arrogar de observações estéreis em sentido e em lucidez? Por que carga de água se envolve a meteorologia, a poesia de fraco calibre e uma ameaça aplicada a uma individualidade que ousasse tributar este espaço? Há necessidade de procurar exaustivamente sinónimos do vocábulo “taxa” e trazê-los para o devaneio? Faria mais sentido fundir-me no breu do quarto onde repouso, engrenar a reflexão pausada e hermética acerca das grandes questões dos tempos modernos e, só respeitada tal decisão, dispô-la numa folha em branco? Respondo à última interrogação apenas. Talvez fizesse, mas só com a garantia do accionar todos os interruptores e mais alguns.

Ora, a tentativa de crítica ao preço dos combustíveis ruiu. A tentativa de ligar o remexer as entranhas com o sacudir e estender a roupa idem. Mas onde é que eu tinha a cabeça? Calma, ainda há mais. A tentativa de fazer uma chalaça com as palavras “entranhar” e “estranhar” caiu no ridículo. Ai, se Fernando Pessoa fosse vivo. Como se não bastasse, tentou-se tirar a nódoa com tiradas – que, no entender do autor, foram pensadas para servir fins – hílares. Assumo a derrota em todos os campos e mais alguns. E, termino, dizendo que o Desinteresse está no nome da rubrica e presente na crónica. Melhor ligação não pode haver.

E, embora trazido à crónica, o Desinteresse pelo qual me interesso já teve melhores dias. No auge e nas décadas de ouro – tempo no qual as pessoas lutavam pelo Desinteresse com determinação e que, independentemente de posições mais conservadores ou progressistas, o defendiam intransigentemente – a classe e a elegância eram outras. O discurso privilegiava o escavado à rama, o debate através da proposta ao insulto gratuito e a tentativa de consenso à declaração de inimizade. As pessoas entram para o Desinteresse e só querem tacho e benesses. Chegam, até, a desinteressar-se pelo Desinteresse, comportamento que sempre tomei como impensável. Desagrada-me, sobremaneira, esta forma de estar no Desinteresse. A contaminação do espaço público é proveniente de um reacionarismo que julgamos extinto e que, como a fénix, renasceu da cremação do indivíduo. Das cinzas. Peço desculpa. Das cinzas.

Refiro-me, evidentemente, a todos os protótipos de ser humano e mais alguns. Perdão, não é nada disto. Refiro-me, sim, a todos os protótipos de seres humanos que utilizam a expressão “todos e mais alguns”. Os trastes da sociedade foram revelados, sem pudor. As narrativas populistas, assentes em percepções e em teorias da conspiração, grassam nas ruas e ruelas deste país. O discurso taberneiro e simplista dos defensores do “todos e mais alguns” transforma o Desinteresse numa actividade pouco digna e de responsabilidade a tender para o grau mais baixo e esmorece a credibilidade e o sentido de dever cívico que lhe está associado. As mentiras e a desinformação disseminadas, com frequência significativa, pelo bando dos todos e mais alguns, gravita em torno de um líder carismático – no imaginário de muitos, o Messias Vocabular – e candidato aos mais altos cargos gramaticais da língua portuguesa. O respeito pelo Desinteresse caminha para a extinção e os abutres de que falo esfregam as mãos.

Um dos juízos que mais apraz à gente ultra todos e mais alguns é o seguinte: “nós somos por todos e mais alguns porque o Desinteresse depende exclusivamente do léxico deles. Os todos e mais alguns esforçam-se para sustentar a lusofonia, através do emprego de termos como “eu pessoalmente”, “fazem cinco anos”, “surpresa inesperada” e “sair para fora/entrar para dentro”, entre outras. O documento Word até sublinhou com pequenos pontos azuis a última expressão discriminada. O Desinteresse está a morrer lentamente pelo facto de sucessivas perfurações desta prédica se infiltrarem nos grupos mais moderados, auxílio precioso no fundar do sistema desinteressado em Portugal. A falência do projecto com início em 1143 evidencia-se a cada esquina e os anti-sistema chamar-nos-ão alarmistas, catastrofistas, pessimistas e outros -istas que possam surgir.

Com a chegada ao século XX e as promessas do Desinteresse por cumprir, os cavaleiros andantes do tudo e mais alguma coisa atentam gravemente contra o Desinteresse. Juntando ao emaranhado de pleonasmos que nada acrescentam, pronunciam termos erradamente e, após a correcção quase esquiva do receptor da mensagem, soltam um “foi o que eu disse”, um “é igual, tu percebeste” ou um impaciente “posso prosseguir? É falta de educação atropelar a fala de quem a detém”. No momento, consequência da fúria que percorre as entranhas, apetece mandar bugiar a pessoa (é óbvio que não utilizo ao desbarato a palavra que faz companhia aos pequenos gâmetas). Já falamos sobre as entranhas, não vou voltar ao tema. Volta e meia, dá-me a sensação de que sou invadido por tentações de tudo e mais alguma coisa.

O futuro da língua portuguesa consterne-me e a ascensão dos defensores do tudo e mais alguma coisa vai ditar os próximos anos. Talvez seja melhor aceitar. E resistir, resistir até ser impossível. É o que é”.

Que legitimidade tem um militante do é o que é para atacar os súbditos do tudo e mais alguma coisa de colocarem em risco o futuro da língua de Camões?

Este autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

Romão Rodrigues, Mestrado em Jornalismo e Comunicação

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

error: Este conteúdo está protegido!!!