É surreal. Peço mil e uma desculpas à minha professora do Ensino Básico por ter encetado um texto com a conjugação do verbo ser no presente do indicativo, mas foi o melhor que consegui arranjar. Tenho as minhas razões, ou melhor, a razão passou a ter um travo uniforme e eu não pude escapar. O Sr. José Saramago tem culpas no cartório! Dê-lhe um puxão de orelhas ou uma sapatada como as que eu levei! Portanto, diante de uma situação pandémica, excecional, irrisória, anómala e todos os adjetivos que se assemelhem, proponho um método disforme de transmitir mais um parecer sobre o assunto que ocupa noticiários, redes sociais e as videochamadas dos meus pais.
Sob a aura de uma pandemia incendiária, os dias de quarentena são ocupados com a leitura ávida de “Ensaio Sobre a Cegueira”. Cessadas as rasuras nem sempre pertinentes de Hemingway e contempladas as vivências e peripécias que me eram enviadas diretamente de Paris, “onde tudo era uma festa”, mergulhei na literatura sarcasticamente herege e ideologicamente de esquerda do único Nobel português de Literatura porque, embora a mesma se tente refastelar nos recantos que por ele são construídos, não consegue passar despercebida a quem prima, com frequência, a minúcia.
Cá entre nós, desconfio que a capacidade premonitória de qualquer leitor candidato ao prémio literário mais aclamado seja um parâmetro de avaliação. Reparem: 1995 já lá vai, a milhares de quilómetros e, mesmo assim, 2020 é fisgado por uma pedra com tonalidades de preocupação, angústia e, sobretudo, medo. O filho da Golegã escrevinhou e cingiu energias a uma epidemia que cegou – literalmente – um dos sentidos humanos, incrustando-a no seio de uma sociedade que de ficcional tem pouco ou nada. O mal branco, aos poucos e poucos, proclama uma morte anunciada nas primeiras páginas do livro. Depois, tudo é desagregação e a voracidade da mesma é de tal ordem impactante que a descrença é só uma consequência imediata e (ir)refletida – a travessia é realizada do divino ao mortal. O Homem sucumbe num pano de fundo branco, mas as suas práticas escorrem o suor na escuridão. O livro é lido e ilumina-se a sensação de que, para se dizerem as verdades nuas e cruas, não são necessários altares com floreados espampanantes. À dissimulação não se conhece o paradeiro, as palavras são devidamente treinadas e dirigidas sem rodriguinhos ou sem a mansidão que a um corno está confinada.
A relação com a atualidade é seca, calculada ao milímetro e rústica na forma como a descreve. Em 25 anos, na viagem entre o ficcional e o verdadeiro, pouco ou nada se alterou. O medo generalizado, a angústia dos que sofrem e dos que sofrem pelos sofridos, os que choram e fazem do conformismo a sua força, a segregação do infetado e do não infetado e as quarentenas, os que tentam fugir às responsabilidades cívicas e sociais, os que se deixam governar por quem deles não dá a mínima e os que lutam, resistem e arranjam forças onde não as há. O exemplo, claro está, virá dos últimos!
“Em terra de cegos, quem tem um olho é rei”. Que o diga a mulher do médico. A salvação pode depender de uma retina. Em tempos de pandemia, necessitamos de ter dois e bem desobstruídos! O vírus afeta o sistema imunitário e – que se saiba – não provoca cegueira nem qualquer tipo de obstáculo à visão. Por isso, convém não pisar o lamaçal que cobre a ignorância e reter a informação essencial (não tudo o que lemos, vemos ou ouvimos) e observar o que, neste momento, nos reduz ao cárcere das nossas casas.
Cegueira é a metáfora lapidar do mundano. Não reside a mínima hipótese de incrustar a fé no ensaio. Não dá, ponto final. A fé, de certo modo, alimenta e rega de um perdão forçado as práticas indecentes. Se calhar, o cego da pistola, depois de abusar das mulheres provenientes das camaratas e de perecer a uma tesoura enfiada num pescoço, foi para o céu porque tinha necessidade de elevação. Mas a fé não o curou da cegueira que padecia! Na realidade, passa-se algo semelhante: a fé observa a realidade através da ciência e deposita nela todas as esperanças. Porque não tem mais nada a que se possa agarrar…
Por último, gostava de dizer que comecei daquela forma porque o mestre não escreve os diálogos como eu os estou habituado a ler. Professora, podia dar-me uma benesse…