O Conselho de Ministros aprovou, na passada quinta-feira, o mecanismo de escrutínio prévio de personalidades convidadas a fazer parte do Governo.
O mecanismo tem 36 perguntas, abrange os últimos três anos de atividades e estende-se ao agregado familiar. As perguntas, por sua vez, estão dividas em cinco áreas distintas: impedimentos, conflitos de interesses, situação patrimonial, situação fiscal e responsabilidade penal.
Nesse sentido, a questão sobre a qual pretendemos aqui discorrer prende-se justamente sobre a incapacidade de este instrumento responder a situações como as que recentemente levaram às demissões no Governo. Vejamos:
O mecanismo é um mero questionário
Trata-se de um conjunto de perguntas que, na prática, já são respondidas na declaração de inexistência de incompatibilidades, registo de interesses e de património feitas pelos titulares de cargos públicos. Portanto, a questão não é tanto se os dados são suficientes, mas, sim, o que vai ser feito com essas respostas. Nos casos conhecidos, o problema nunca foi aquilo que o Governo não sabia, mas o que o Governo não quis saber. António Costa sabia que Miguel Alves era arguido em processos judiciais, sabia que o marido de Carla Alves tinha sido acusado de crimes de corrupção, etc. e, mesmo assim, decidiu convidá-los para o Governo.
Um mecanismo de desresponsabilização
A responsabilidade política deve ser sempre de quem escolhe. Não é o facto de alguém passar por um crivo que faz com que seja uma boa escolha – isto porque as qualidades das pessoas não se esgotam (felizmente) num mero questionário.
Por conseguinte, o mecanismo de escrutínio pode ser usado para encobrimentos e como um álibi do Governo. Nesse sentido, é importante garantir que não seja um pretexto para que amanhã se possa dizer: eu convidei este senhor, mas o senhor é esquecido, é mentiroso ou tem dificuldade em prever que, face às suas ações, os mecanismos judiciais atuem – por exemplo, que num espaço de três meses passe a ter um processo criminal em que figura como arguido.
Este passo deve representar uma responsabilização maior sobre o primeiro-ministro e não uma desresponsabilização, senão corremos o risco de repetir a célebre expressão “a culpa morre solteira”.
Um mecanismo de controlo de danos
Na prática, esta medida aparenta evitar apenas uma série de riscos ao Governo. Na sua rácio, não está a garantia que os membros do Governo sejam íntegros e honestos, mas a garantia que não trazem determinados problemas acoplados. Assim, analisado o questionário, não se evitaria, por exemplo, o caso de Alexandra Reis – uma vez que não contempla nenhuma pergunta relativa a uma indemnização (a qual não é um financiamento público).
Problemas de transparência
Ao mecanismo é atribuído um grau de secretismo, sendo destruído no momento em que tal informação deixe de ter razão para existir. Por conseguinte, o mecanismo padece de vícios de transparência, devendo as respostas ser tornadas públicas.
A existência do questionário não pode ser apresentada de forma nenhuma como um substituto ao escrutínio público que deve existir e exigir, em matéria de avaliação, ética e de conflito de interesses.
A este respeito, veja-se, por exemplo, os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em questões de liberdade de imprensa, os quais entendem que ocorre na esfera jurídica de quem exerce um determinado cargo de poder, uma compressão do direito à privacidade. Tal significa que os titulares de cargos públicos pagam um preço por beneficiarem de certas coisas – terem menos privacidade no que diz respeito aos rendimentos, património, interesses, etc.
Consequentemente, estes dados devem ser escrutinados, não apenas pelos seus pares mas pela sociedade e da forma mais transparente possível.
Em suma,
O problema das nomeações para órgãos de Estado não se resolve por via de formulários, porque o problema é ético e político. E tanto a ética como a política são coisas que, no fundo, não se clarificam com simples questionários.
No fundo, o problema é dos partidos e da democracia que não conseguem atrair para a causa pública pessoas de bem, pessoas com provas dadas, reconhecidas pelo que são e pelo que fizeram, e cujos currículos, obras e personalidades não precisem de apresentação nem de atestado de integridade, honestidade ou probidade.
Claro que qualquer processo que melhore a qualidade de recolha de informação dentro do Governo é sempre uma melhoria. Todavia, não vale a pena a elaboração de um mecanismo “para inglês ver”, ou seja, se este for um mero mecanismo de desresponsabilização.
Deverá existir, sim, uma pesquisa ex ante.
Em suma, parece-me que este mecanismo advém de uma crescente mania para regulamentar tudo, todos e mais alguma coisa.
Quando há um problema, legislamos em pânico. Compensando com mais imposições legais (criadas à força), a que damos nomes pomposos, como é o caso deste mecanismo, que, afinal, se resume a um conjunto de perguntas, as quais eram 34, mas passaram a 36 e que amanhã tanto podem ser quatro como 40.
Como dizia Fernando Pessoa, o mito é um nada que é tudo…