OPINIÃO: Vocês nem sonham que reações podem ser desencadeadas por um post-it

Desinteresso-me até certo ponto

Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.

– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.

Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.

Vocês nem sonham quem é que eu reencontrei na semana passada. Não acredito que consigam adivinhar, porque é a hipótese mais remota de todas. Se acertarem, pago-vos um refresco no café mais próximo. Se não acertarem, não me surpreende minimamente, até porque seria bastante confrangedor que tal sucedesse. Desistem ou não? Já vos disse que não irão conseguir. Não sejam teimosos. Querem atiçar-me, mas não vos permito, porque tenho uma psique que é uma categoria. Eu gosto de testes hercúleos, sapador florestal. Existe uma possibilidade de algum sapador estar a ler isto? Agradar-me-ia de forma sobeja.

Ora, esta forma de nos dirigir às “pessoas humanas” – termo gasolina para fogueira mental que encerro – tem de acabar. E tem de acabar porquê? Não faço bem ideia. Sei que irrita e isso basta. Raras são as pessoas que acertam na(s) pessoa(s) contempladas. Neste tipo de situações, é muito difícil manter telepatia até ao momento em que se responde um “não faço a menor ideia, mas diz-me porque estou curioso”, um “pronto, vem agora este/a com a pergunta do milhão de euros”, um “já te respondo, deixa acabar o scroll no Tinder porque hoje ainda não dei match com ninguém” ou um “pá, não quero saber, estou com pressa porque falta-me azeite em casa”.

Pior! Excecionalmente, quando acertámos, o gáudio sentido por sermos um génio, durante dois ou três segundos, é largamente superior à reação que esperamos do outro interlocutor, pessoa munida de uma resposta automática que nos assola. “Sim, adivinhaste”, “uau, que pontaria” e “tu lês os meus pensamentos” são algumas das expressões mais usadas. O reconhecimento não está à altura da façanha. Mesmo que se reduza o universo às pessoas em comum que os protagonistas de tal parlapiê conhecem/privam, as chances de decifrar o mistério – que só o é por escassos segundos, minutos, se tanto – continuam a ser remotas. É triste, mas os cruzamentos entre pessoas, neste país, abeiram sarjetas fétidas e imundas. Note-se a poesia da metáfora.

Até à data, este género de ocorrências aconteceu escassas vezes comigo. Para ser sincero, não me recordo da última vez em que fui vítima deste interpelo enquanto atravessava ruas e avenidas. Se adentrarmos pelo espetro das vielas, já não consigo precisar pelo facto de, em primeiro lugar, não frequentar com tanta incidência e, em segundo lugar, por acreditar que esta abordagem seja característica deste espaço de circulação. Acusem-me de xenofobia de vias de circulação, caso seja importante para o vosso bem-estar. Dou-vos razão. Pertenço à geração Z, embrenho-me nos diz-que-disses que abundam nas redes sociais e associais, frequento cafés de aldeia e converso com gente reformada. Jogo Candy Crush diariamente, mas não consigo passar o nível 387. Não tenho coragem para pedir a mínima compaixão, merecemos ser espezinhados como besouros, baratas e moscas. Fecho o aparte. Prolongou-se mais do que aquilo que queria.

Um dos problemas de Portugal redunda na ausência de sensibilidade, no eclipse da delicadeza. As pessoas não têm tato. E não me refiro só a pessoas sem parte ou partes de membros superiores. Os interpeladores que perpetuam a frase “vocês nem sabem quem é que eu vi em x data” marimbam-se no possível desinteresse dos interpelados. A pergunta não fere, o que fere é o assumir prontamente que a pessoa com quem falamos está a fim de participar naquela manifestação de egocentrismo. Ainda não conheci ninguém que, após relato de outrem, perguntasse se queríamos saber de quem tinham avistado/falado. Aproveito este espaço para lançar este desafio.

“Queres saber quem é que eu vi na semana passada?” e “nem sabes quem vi na semana passada” proporcionam diferentes comportamentos. Ao primeiro, a pessoa abordada pode escolher entre as opções “sim”, “não”, “depois dizes-me porque agora estou com pressa”, “se pagares um almoço, posso pensar no assunto”, entre outras. Ao segundo, estamos limitados desde o início e, quando rejeitamos participar naquela insensatez, somos acusados de má educação e afins. Aqui, uma pausa para a Filosofia: pegar no termo “boas maneiras” e chafurdar na sua epistemologia a fundo.

O meu conselho desbrava horizontes e rasga convenções. Os estudiosos deste tema diriam algo como “arranjem outros tópicos de conversa, mesmo que respeitem o epíteto de “chacha”. Isso é muito fácil e só serve para tapar olhos. À primeira oportunidade, lá vem o lembrete e o perpetuar de um ato egoísta. Eu proponho algo maior: quem sente aborrecimento quando confrontado com a tal conduta, pode dispor na lapela do casaco um post-it onde estão grafadas as palavras “participo em conversa de circunstância, mas não entro no jogo do não sabes quem vi/com quem falei na semana passada”. Assim que se cruzar com um conhecido/amigo, envergue e aponte no sentido do post-it. Numa rua, numa avenida. Até numa viela. Registar o número de olhares reprovadores pode constituir uma atividade da qual se extrai algum gozo.

Finalizo o desabafo com um alerta: caso tenha marcado um encontro amoroso e pretenda, horas mais tarde, ser parte integrante de um coito que está no seu pensamento desde o momento em que conheceu a/o felizarda/o, não se esqueça de retirar o post-it da lapela do casaco.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

error: Este conteúdo está protegido!!!