OPINIÃO: Pingo literário

Na história da humanidade temos assistido a inúmeros atos de soberba valentia. Não posso esquecer de Alexandre, o Grande, que morreu invicto em batalhas e é hoje considerado dos militares mais bem-sucedidos da história. Tampouco ignoramos a bravura do povo francês que em 1789 audazmente derrubou a monarquia absolutista dando-nos a célebre Revolução Francesa. Todavia, nada equiparar-se-á com a tremenda coragem de Petrarca, que – desventurado – colecionava livros numa época que não havia Instagram. Comovo-me com as três, no entanto não posso descurar o heroísmo de Petrarca ao dedicar-se à coleção de livros sabendo que á posteriori jamais iria fazer deles um plano picado envolto de frutas cristalizadas. Para não falar de Calímaco, notável bibliotecário de Alexandria, que dedicou anos e anos do seu tempo aos livros e que fora igualmente impedido de fotografar as suas sandálias castanhas que tão bem ficavam ao lado de um exemplar das crónicas de Heródoto.

Tudo para dizer-vos que terça-feira cometi ato perigoso e subversivo, ainda que ambicioso: comprei um livro e acabei por lê-lo. Deixem-me dizer-vos em minha defesa que foi o único livro que li e que o erro cometido não acontecerá nunca mais e que após a leitura arrumei de imediato o Saramago junto à calçadeira contígua à casa de banho. Todos sabemos que o livro é apenas o mais belo ornamento. Tenho o Crime e Castigo na sala porque dá um contraste interessante com o castiçal de sete braços que a avó me deixou. O Velho e o Mar permanece junto ao aquário e Édipo Rei distante da possível curiosidade de minha mãe. O último exemplar que chegou é de um ensaio de Steiner naturalmente já a pensar nos cortinados que estão por vir.

O livro tornou-se objeto de mera estética. Qual o idiota, nos tempos atuais, que compra livros para ler? Dirigimo-nos hoje a uma livraria como ontem a uma MoviFlor. Só que no lugar da mesinha de cabeceira, que outrora comprávamos para apoiar o livro, desta vez compramos o livro para apoiar a mesinha de cabeceira. É o que acontece com a moda do bookstagram. São pessoas – em alguns casos mais graves são mesmo influencers – que julgam serem intelectuais apenas porque o exemplar do Guerra e Paz já encanecido tem a mesma cor da sua cristaleira. Comprar livros para arrebicar o feed de Instagram é o equivalente a comprar um bom par de ténis e usá-los nos ombros. De início até pode parecer interessante usar cordões a roçar o pavilhão auricular, mas depois de alguns segundos torna-se, vá lá, estúpido.

Há dias, num famoso perfil da mesma rede social, conjunto de livros cujo os títulos não me lembro eram usados de suporte para dois pequenos vasos. É gente facínora com livros e terna com seguidores. E andou Pessoa a vida toda a dizer-nos o contrário. Outros perfis exibem os deliciosos pequenos-almoços de dieta com boas papas de aveia, dois gomos de laranja (malucos há que por vezes exageram e põem três) e o seu exemplar 1984, do escritor Eric Blair. É livro que fica bem com tudo. Tem de ficar bem com tudo. É o critério. Outros bebem pingos enquanto folheiam Camus e são exatamente esses para abater e é aqui onde quero chegar. Haverá bons leitores que bebam pingos? E se houver, devemos deixar isso acontecer?

Lanço-vos então aqui um repto para vocês os três que entusiasmadamente me leem sempre tão caladinhos.


Nótula em jeito de recomendação:

Este livro: E Assim Sucessivamente, de Abel Barros Baptista
Esta música: Beautiful, de Carole King
Este Stand Up: 23 Hours To Kill, de Jerry Seinfeld

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