É de muita cor e criatividade que é composta a tradição secular do Cortejo de Trajes de Papel em honra a São Bartolomeu, na Foz do Douro, no Porto. Nela centenas de pessoas participam e outras tantas põem mãos à obra para que nunca se perca. No passado domingo, 25 de agosto, voltou a sair às ruas sob o tema “Os Jogos Olímpicos e as cidades das nossas medalhas”.
De Tóquio ao Rio de Janeiro, foram cinco os grupos de participantes num desfile que ‘desaguou’ no mar, na praia do Ourigo, para um “banho santo”, como manda a tradição. É por ela que muitos se juntam há décadas e que outros têm curiosidade em participar.
Fernanda Chalupa, presidente do Orfeão da Foz, que representou a Grécia Antiga, frequenta este organismo “há 40 anos ou mais” e sempre esteve ligada à realização deste cortejo de alguma forma devido à sua família: “Sempre ajudei, mesmo antes de ser sócia os ajudava e depois de sócia continuei a ajudar e agora mais ainda”.
“Sou da Foz, também já tinha a tradição de trás e família que já trabalhava no São Bartolomeu e até noutras coletividades e é daí que vem. E, depois, também o gosto neste género de coisas. É a festa da terra, é a festa da Foz, é a tradição da festa que também gosto e não quero que acabe e, depois, também é o gosto nestes trabalhos”, contou ao Jornal Referência.
É em tudo o que forem enfeites e adereços das roupas que os participantes levam que Fernanda Chalupa dá o seu toque: “Tudo à mão, tudo em papel, cartão, cartolina papéis de embrulho… tudo o que esteja ligado, colas, tintas, tudo isso”.
“Quando estou a fazer, parece que já estou a ver e, depois, ver o resultado final, que me deixa orgulhosa”, confessou, agradecendo a todos os que a ajudaram neste processo que já se inicia em março/abril, mas só a partir do início de julho é que começam “em força”. “Temos momentos de tudo, temos momentos de muito trabalho, temos momentos de muita borga e toda a gente convive uns com os outros”, referiu.
Fernanda Chalupa desfilou apenas uma vez, pois é também uma das pessoas que faz um dos trabalhos que é preciso ser feito, o de dirigir o cortejo: “Desde que cá estou sempre ajudei, sempre participei. Desfilar, só desfilei uma vez. Cortejo já faço há muitos anos”.
Apesar de ser difícil escolher um dos cortejos ou fatos como o mais especial, admitiu: “Acho que deixam-nos todos aquela sensação de trabalho bem feito no fim”.
No entanto, há uma preocupação que Fernanda Chalupa não escondeu e que não é a única a ter: o manter desta tradição com mais de 150 anos.
“Tinha mais receio até este ano, mas a união de freguesias, este ano, abriu assim umas formações para corte, para costura e envolveu as escolas pela primeira vez e pode ser que os miúdos na escola comecem a trabalhar e os miúdos sempre trazem as famílias”, comentou, considerando que a ideia de envolver os mais novos foi “muito boa”, até porque “já não há quem saiba coser à máquina, não há quem tenha uma máquina de costura e corte”.
“Acho que esta formação que estão a fazer vai dar algum alento para as pessoas continuarem, que a tradição continue. A mensagem é mesmo essa: é não deixarem morrer a tradição! E até pelo convívio, deixam os telemóveis, estão sentados no sofá no telemóvel… Que venham! Sempre se convive mais, sempre se conversa, sempre se conhecem mais pessoas. Eu acho que é saudável por tudo”, rematou Fernanda Chalupa.
A jovem Mariana Antunes veio ajudar a dar resposta a este receio. Este ano, participou pela primeira vez no cortejo, pela Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira (que interpretou as cidades orientais), e já garantiu “vaga” para a próxima edição.
Dado que “promove vertentes artísticas, culturais e sociais”, Mariana Antunes defendeu que é de “extrema importância” manter esta tradição: “Há um planeamento espetacular e é tudo voluntário, ou seja, todos os que participam, seja de que forma for, participam por gosto e para manter esta tradição viva e é algo lindíssimo de se experienciar”.
Para Mariana Antunes, esta é uma “tradição tão rica e já com tanta história e anos de realização” e, por isso, acredita que a candidatura à UNESCO “é crucial”: “Espero que consigamos esse reconhecimento! Seria uma forma de preservar algo que é tão nosso, tão importante e, ao mesmo tempo, de o dar a conhecer a muitas outras pessoas de culturas diferentes”.
“Foi a minha primeira vez no Cortejo e já deixei o meu nome para o próximo ano, portanto, isso foi o quanto eu gostei de estar envolvida. O ambiente era absolutamente espetacular! Toda a gente estava animada e acredito que todas as entidades seguiram de forma magnífica o tema deste ano”, afirmou ainda.
De várias formas e feitios, com letras de notícias ou liso, o papel deu forma ao desfile que juntou miúdos e graúdos. Pormenores e evocações históricas não faltaram, bem como a presença de Rosa Mota, que, este ano, teve o papel de convidada especial. A atleta natural do Porto trouxe para Portugal a medalha de ouro na maratona dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988, e foi agora porta-estandarte neste cortejo que muito lhe diz.
Ao longo do cortejo, o Orfeão da Foz representou os filósofos, a tocha olímpica e muitas outras personalidades e elementos que recordam a Grécia Antiga e o Desportivo Operário Fonte da Moura trouxe símbolos relativos aos Jogos Olímpicos de Londres. Já a Associação de Moradores do Bairro de Aldoar e a Associação de Moradores do Bairro da Pasteleira interpretaram o Rio de Janeiro e cidades orientais (Seoul, Pequim e Tóquio), respetivamente. Enquanto a União das Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde espelhou os destaques dos Jogos Olímpicos de Paris.
Na plateia, várias pessoas conheceram o cortejo pela primeira vez e outras registaram nos seus telemóveis mais uma edição à qual assistiram com os seus mais queridos.
Amélia Silva, hoje em dia, já não passa a sua criatividade para as peças usadas no Cortejo de Trajes de Papel, mas não perde um desfile. Este dia é sempre reservado para um passeio pela Foz e convívio em família.
“Há muitos anos que venho ver o cortejo e, durante parte da minha vida, integrei a equipa de pessoas que desenvolvia os fatos em papel. Hoje, apesar de muita coisa ter mudado, continua a ser um dia que gosto muito porque se tornou uma tradição de família”, partilhou.
De geração em geração, quer ser Património Imaterial da UNESCO e ficar na história
No calendário litúrgico, 24 de agosto é dia de São Bartolomeu, que era e continua a ser invocado contra a gaguez, enfermidades nervosas, associadas a possessões demoníacas e a males de pele, sendo também conhecido por ser o patrono dos alfaiates e das empresas de manufaturas de peles. Contudo, este santo está, acima de tudo, ligado ao culto das águas. Segundo se acredita, o famoso “banho santo” que fecha o cortejo cura todos os males e “vale por sete”, já que, dizem os populares, o santo encarna nas águas nesta altura.
Existem documentações do culto a São Bartolomeu na Foz do Douro, pelo menos, desde o início do século XIX, como uma prática antiga de culto ao poder regenerador das águas e ao banho santo, segundo refere o portal de notícias da Câmara Municipal do Porto.
Para perdurar este legado, a União das Freguesias de Aldoar, Foz do Douro e Nevogilde está a preparar uma candidatura a Património Imaterial da UNESCO, em conjunto com os municípios espanhóis de Mollerusa, Amposta e Güeñes, que vivem tradições semelhantes.
Ana Regina Ramos e Joana Aleixo