Desinteresso-me até certo ponto
Se pensarem bem, aquilo que é vulgar e desinteressante pode suscitar curiosidade.
– “Uau!” – exclamam vocês impressionados com a genialidade.
Todos rimos muito, antes de alguém me acertar com um pau de marmeleiro nas costas.
Esta rubrica continua a clamar por censuras a acontecimentos, não continua? A meu ver, clama intensamente. A pergunta era retórica, ilustres companheiros. Não que os leitores sejam ilustres ou companheiros, mas urge simpatia aquando da aplicação da apóstrofe, principalmente quando não me insultam ou agridem de forma mais dolorosa. Não sei se é percetível a falta de engenho e a eloquência ao nível do garatujar aquando do trato de novas matérias. A minha avó diz muitas vezes a frase “quem nasce para dez, nunca chega a vinte”. Parece-me uma afirmação perentória.
O ato de parabenizar alguém assombra-me desde tempos idos. Por vezes, pereço ao jugo do olvido e não congratulo as pessoas de quem gosto ligeiramente. Pode soar a desculpa e soa incrivelmente bem. A perspicácia dos leitores nesta problemática é admirável. Quando sinto que a consciência não engorda subitamente, faço por me esquecer desses aniversários. A validade expira, eu respiro fundo e deito a cabeça na almofada para proceder à atividade na qual me destaco: dormir. Uns dias mais tarde, no encontro com a vítima, debito uma balela simultaneamente credível e insólita. A reação resume-se a espanto e a aceitação imediata.
Agora, a presença nas redes sociais de vária ordem corrompe, por completo, a prática acima mencionada. As “histórias” são visualizadas e os seguidores visualizam centenas destas por dia: fotografias ou vídeos da pessoa que celebra o aniversário. Se a pessoa que conhecemos faz anos e nós adquirimos essa informação por intermédio de pessoas em comum, parece mal não parabenizá-lo. “Por que razão o Artur não me deu os parabéns? Ele colocou várias storys dos monumentos que visitou em Barcelona e não teve cinco minutos para me mandar uma simples mensagem? Ademais, viu os storys que coloquei nos meus storys que continham pessoas a felicitarem-me…”. O ressentimento medra e nem na cova jaz. Subitamente, ao invés da pessoa nos ficar eternamente agradecida e de nos remunerar mensalmente com uma quantia avultada, embebe a relação que mantém com quem não a felicitou numa papa de fel e cólera.
No fundo, eu e as restantes pessoas que agimos da maneira que descrevi no segundo parágrafo zelamos pelo epicurismo, ou seja, pela demanda da felicidade do aniversariante. Ao não celebrar e ao não fazer qualquer menção ao seu aniversário, não apalpamos a finitude da sua existência com palavras vãs em significado: em perfeita consciência, a comemoração anual atira-nos para um bueiro de pessimismo onde escoam os ensinamentos de Schopenhauer e Kierkegaard. Na pele de aniversariamente, reúno o infeliz discernimento para me encarcerar na masmorra da ausência de sentido da vida. Indiretamente, na pele de pessoa que celebra os aniversários de quem me rodeia, ao contemplar o seu lento epílogo, relembro aquele que será o meu último capítulo. Ora, o ser humano celebra morte às fatias e eu não pretendo compactuar com tal comportamento.
O cardápio de expressões utilizadas acelera e intensifica este pesar. Enquanto pessoa que brinda, mereço uma valente carga de pancada. Nestas situações, queria ser inspirado por musas e fazer poesia, mas sou tomado pelo despautério e por alguma vilania. Acobardo-me e digo exatamente o contrário daquilo que penso. Vejamos um exemplo. “Parabéns, tia! Quantos faz? 87 anos já!? Que disparate, não é nada velha. Está uma jovem ainda. Vai durar até aos 100, vai ver. Quando chegar aos 90 tem de fazer uma festa à maneira. Hoje pode abusar um bocadinho, a diabetes dá-lhe descanso. Beba 2 copos de vinho ao invés de beber só um. Não se celebram 87 anos todos os dias”. Se a minha tia tiver seguido os conselhos que lhe dou desde os 78/80 anos, estará perto do fim e de certeza que não chega aos 100.
Enquanto pessoa que é brindada, sinto profundo desgosto com tudo o que me é dito, mesmo repleto de boas intenções. Vejamos outro exemplo. “Está lá!? Romão!? Parabéns! Olha, quero desejar-te as maiores felicidades e a maior das sortes. Quantos fazes? 23, já!? Como o tempo passa… ainda há pouco andava contigo ao colo. Tu choravas imenso quando eras pequeno, sabias? Eras muito chato! Estás tão adulto agora, até me custa a acreditar… Vá, a gente vê-se. Um abraço!”. Obrigado por me relembrarem sempre que o tempo galga. Ainda não tinha tido consciência, dada a minha posição nada otimista sobre esta temática. Chorava imenso porque já pressentia que isto de viver seria fastidioso. Só sabiam mudar-me fraldas e dar-me seios para eu sugar. Conversas sobre metafísica que eram úteis e bonitas, está quieto. A gente vê-se? Será que a gente se vê? Não era melhor afirmar que a gente nunca mais se iria ver e, depois de nos cruzarmos, constatar a agradável surpresa que o destino nos ofereceu? Era, porque ambos conhecíamos mais um foco de felicidade efémera.
Gostava de integrar uma Lista de Schindler, mas a única coisa que integro são listas negras. Se a vida é meramente aquilo a que assisto, vou deixar de me preocupar com quem gosto ligeira ou extremamente. A partir de agora, as pessoas que me conhecem podem contar com as minhas felicitações. Uma boa morte também para os que não conheço.